Pois então o deputado Ronaldo Cunha Lima (PSDB/PB) pediu o boné faltando cinco dias pra ser julgada a ação penal a que responde no STF pela tentativa de assassinato de um adversário político, há 14 anos, quando era governador.
Não pensem que foi sem dor: Cunha Lima deixou uma carta dizendo o quanto sofre pelo que fez e anunciando o nobre gesto de renúncia aos seus privilégios de deputado, como o foro privilegiado.
- "Quero, com esse gesto extremo, despir-me de quaisquer prerrogativas para assumir, apenas como cidadão, episódios particularmente dolorosos de um passado já remoto no tempo, mas ainda muito presente em minha vida e minha consciência, por seus desdobramentos de sofrimento e de dor"
Cunha Lima é um poeta, e a arte precisa ser apreciada.
Vale a pena dar uma bela olhada na questão do foro privilegiado. Por meio dele, todo processo contra um deputado sobe ao Supremo Tribunal Federal. Lá, demora pra caramba para ser julgado. Segundo o Estadão, em dez anos o STF não condenou político nenhum. Porque não chegou em tempo à fase de julgamento de nenhum político. Ou seja: o foro privilegiado é um entrave.
O ministro do STF Joaquim Barbosa, relator do processo, disse com todas as letras:
"Esse homem manobrou e usou de todas as chicanas processuais por 14 anos para fugir do julgamento. O ato dele é um escárnio para com a Justiça brasileira em geral e para com o Supremo em particular."
Quando um nobre representante do povo que tem pendências na Justiça deixa o cargo - por fim de mandato, renúncia ou outro motivo -, o processo deixa de ter foro privilegiado. Assim, desce de volta para a instância judicial de onde veio e volta a tramitar. Quando isso acontece, na prática, o que ocorreu com o processo foi que a papelada passou algum tempo de férias em Brasília.
No caso de Cunha Lima, segundo Barbosa, a volta do processo para julgamento na Justiça estadual da Paraíba - Estado governado por seu filho, Cássio Cunha Lima - deve levar "mais uns dez anos".
Com isso, o político demandado ganha tempo sem ser julgado - e, portanto, sem absolvição e nem condenação. Como a lei brasileira não impede políticos processados de se candidatarem, ele pode se candidatar novamente, eleger-se e ver seu processo tirar novas férias.
Esse tipo de coisa funciona como mel para as abelhas da política.
Não se deve esquecer aí a famosa "prescrição da pretensão punitiva", ou seja, o prazo para que o processo caduque. Ele depende do tamanho máximo da pena possível. Pela Constituição brasileira, ninguém pode ser preso por mais de 30 anos.
No caso da tentativa de homicídio, a pena máxima é de um ou dois terços da pena que o nobre representante do povo teria caso a intenção tivesse dado certo. Pelo código penal, homicídio simples tem pena entre 6 e 30 anos, dependendo da classificação. Peguemos a pior hipótese: tentativa de homicídio qualificado. A pena máxima seria de 20 anos.
Cunha Lima apertou o gatilho contra Tarcísio Burity há 14 anos. Teria mais seis anos de pena máxima para o crime prescrever. Talvez o trâmite demore mais do que isso.
Ou pode prescrever muito em breve. Cunha Lima nasceu em 1936. Portanto, tem 71 anos. Segundo o artigo 115 do Código Penal, depois que o cidadão tem 70 anos de idade, o prazo de prescrição cai à metade. Ou seja, ao invés de 20 anos, seria no máximo em 10 anos - prazo que já passou. Posso estar errado, porque não sou advogado e nunca fui lá muito bom em matemática. Mas é mais ou menos isso.
Assim sendo, toda a retórica de Cunha Lima não passa de poesia. Ele renunciou justamente pra evitar que seja julgado, e não para ser julgado como um cidadão comum.
4 comentários:
Marcelo, este Cunha Lima é indefensável. Você tem razão, o Noblat que escreveu apaixonadamente sobre isto também tem toda razão. Gostaria, no entanto, de comentar o seguinte: por circunstâncias alheias à minha vontade sou filha de autoridade que sempre exerceu a vida pública dentro de critérios éticos. Não falo por ser filha, mas por jamais ter visto o nome de minha família envolvilvido em qualquer escândalo. Sempre que o assunto foro privilegiado vem à tona meu pai argumentar o seguinte: nos Estados Unidos o presidente da República responde na primeira instância, mas no Brasil isto seria impensável. Por que? Aqui, o juiz da primeira instância mandaria prender qualquer autoridade para fazer politicagem se fosse decidir a causa. Aqui, o nível de seriedade das instituições é tão frágil que juiz de primeira instância manda arrombar cofre de banco para saquear dinheiro de folha de pagamento para atender interesse de uma corporação. E, não raras vezes, recebe parte do dinheiro que foi retirado do cofre. Penso que este lance de foro é errado e deve ser repensado, mas devemos pensar também nas injustiças que poderão ser feitas por juízes sem qualquer compromisso com a Justiça. Algemar autoridades não seria meio de carreira política neste país tão desvairado que temos o dever de lutar para consertar? Se o foro privilegiado cair o que vai melhorar?
Sim. É de deixar qualquer um perplexo mesmo. Uma das coisas que me agradam no exercício jornalismo é a obrigação de ter dúvidas, não respostas. Assim, aproveito teu comentário pra dividir um pouco dessa perplexidade.
O foro privilegiado é um assunto em que eu venho pensando bastante nos últimos meses. Escrevi bastante sobre isso no meu blog anterior, o do projeto Deu no Jornal, da Transparência Brasil. A questão é complicada porque todos os argumentos a respeito têm seu quinhão de razão (o que é um mérito de qualquer questão que mereça debate).
Para fins de praticidade, eu julgo razoável um dos efeitos do privilégio de foro: é mais fácil acompanhar o andamento das demandas contra políticos quando elas se concentram em poucos tribunais. É fácil concordar que uma ex-autoridade perca o privilégio de foro, mas com a lentidão da Justiça também se abre bastante a possibilidade de os processos fazerem turismo.
Manter o foro privilegiado depois de alguém deixar de ser autoridade impediria isso, mas abriria espaço para vários privilégios.
É uma sinuca mesmo, especialmente pelo fato de a lei brasileira ser um queijo suíço (e os ótimos advogados que os demandados contratam usarem bem os furos, como no caso de Cunha Lima).
Acho que talvez uma coisa razoável fosse a criação de uma instância judicial só para julgar processos movidos contra políticos. Existe um projeto assim, do deputado Paulo Renato (o que consultou o Bradesco para escrever um artigo sobre bancos), mas não conheço o suficiente o texto pra fazer qualquer juízo a respeito.
Acho que o único jeito definitivo seria a Justiça ser mais ágil para todos. Mas isso é quase utopia, atualmente.
Coitado do Paulo Renato, tem história boa, vinha ali pela vida ganhando nota 7/8 e de repente tirou zero. Ficou sem média... Bem, sobre este assunto de foro privilegiado sugiro que você envie uma consulta do blog para o ministro Celso de Melo, do STF. Ele estuda o assunto há muitos anos e, certa vez, ouvi uma discussão aqui em casa em que ele argumentou com brilho e lucidez usando o exemplo das leis norte-americanas que não estabelecem privilégio para ninguém, nem mesmo para presidentes ou ex-presidentes da República. Meu pai usa muito os argumentos dele, mas emenda aquela história do impensável etc..Em princípio, acho que criar Justiça específica vai garantir privilégios do mesmo jeito. No geral, penso que tínhamos de investir mesmo é na cultura da honestidade. Cobrando decência de todos e dando transparência a tudo, sempre. É o caminho que você segue, razão pela qual admiro seu trabalho. Você acerta ao fiscalizar e dar transparência aos fatos. Acho que a internet vai impulsionar as informações e vamos ter uma sociedade melhor. Sou jovem (nasci em 1984) e sei que o país avançou desde aquela época. Tenho razões para acreditar que vai melhorar ainda mais, se a gente seguir a rotina democrática.
Um abraço, muito obrigada pela resposta ao comentário...
Este é o Brasil, onde acumulação de capital (enriquecer) e impunidade se confundem com política. o importante é nos darmos conta de quem faz essas leis que permitem essa prática: impunidade e enriquecer.
Max
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