terça-feira, 7 de abril de 2009

De mudança

Este blog está indo para o portal da MTV, no seguinte endereço:

http://mtv.uol.com.br/evocecomisso/blog/

Eu ainda estou adaptando o blog de lá - e, pra complicar, hoje me ferrei com o acesso à internet. Mas antes do final de semana a nova casa do "E Você Com Isso" é a MTV.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Festival É Tudo Mentira (5): "Mas eles também!"

Ao longo desta semana, em que houve o Primeiro de Abril e o centenário do Pinóquio, o festival É Tudo Mentira analisou alguns tipos de mentira política. Para encerrá-lo, vamos analisar uma verdade que é usada pra distrair quando a mentira é descoberta: "eles também fizeram isso".

Esse tipo de declaração é usado basicamente com três finalidades.

A primeira é acusar jornalistas, esses malditos xeretas, de relevarem o que os outros fizeram e só revelarem o que eles fazem. Essa versão foi comum ao longo do escândalo do mensalão, por exemplo, quando petistas diziam que a imprensa só investigava escândalos quando eram do PT, nunca do PSDB.

Eu, que comecei a cobrir política no final do governo FHC, lembro de vários escândalos bastante graves que foram cobertos à exaustão na época. Muitas vezes, com informações passadas por fontes da então oposição, hoje governo. Em alguns casos, o esperneio tem um fundo de verdade: por exemplo, o valerioduto mineiro, de raiz tucana e pai do valerioduto federal, foi muito mal coberto em relação ao que ficou conhecido como o caso do mensalão. Mas em boa parte dos casos não procede.

Uma variante dessa reclamação, que foi especialmente comum durante o caso do mensalão, era a de querer que se relevasse escândalos presentes em prol de mergulhar em escândalos passados. Que os escândalos passados merecem esclarecimento, merecem. Mas não à custa dos escândalos presentes. É mais produtivo questionar um governo enquanto ainda está com a mão no pote do que um que já não tem mais a mão lá.

A segunda finalidade é a de jogar coisas no ventilador, alimentando a briga de bugio no curto prazo pra costurar uma pizza no médio prazo.

Isso você está vendo agora, por exemplo, no rolo da Camargo Corrêa. A Polícia Federal identificou sete partidos que podem ter recebido doações por baixo dos panos. Mas uma empresa desse porte acende uma vela pra cada santo, então doa para todos. Portanto, se alguns partidos receberam, todos podem ter recebido. Não há como duvidar desse princípio.

O problema é que esse tipo de coisa acaba funcionando mais ou menos como a fiscalização das contas eleitorais. Essa fiscalização é feita com a ajuda dos partidos. Os partidos olham as contas uns dos outros e aprovam sem se demorar muito. Pode até ser que eles tenham achado algo indevido, mas eles é que não são loucos de denunciar porque sabem o que eles botaram e omitiram nas suas. Vai que o denunciado responde na mesma moeda...

A terceira finalidade é a de confundir, simplesmente. Mais ou menos com a mesma finalidade da segunda, mas não só. Aumenta-se exponencialmente a quantidade de personagens e fatos investigados, fazendo com que a imprensa saia correndo loucamente atrás do próprio rabo pra no fim acabar tudo em pizza. No final, a culpa é sempre da Geni de sempre.

Isso aconteceu com maestria no caso EJ. Eduardo Jorge Caldas Pereira era o assessor mais próximo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele foi acusado de intermediar pedidos do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, o famoso Lalau do TRT, junto ao governo. Em poucos meses, a coisa virou uma bola de neve imensa, em que quase ninguém conseguia entender como é que os fatos se encaixavam.

Foi nesse caso que eu aprendi a confiar na minha inteligência: se eu não entendo como as coisas se encaixam, não é por burrice. É porque tem alguma coisa errada aí.

No desespero, o Correio Braziliense publicou uma matéria completamente errada vinda de uma só fonte sem checagem - e ganhou um Esso por ter publicado errata na primeira página. Meu chefe, na época, brincava com sua voz de trovão: mais dia, menos dia, podia aparecer que o Eduardo Jorge contratou Sandy e Júnior pra cantar num aniversário e ia sair uma manchete dizendo "Sandy e Júnior envolvidos no caso EJ".

Ao final de meses e meses, nada ficou provado. O caso EJ acabou virando contra a imprensa. Não duvido que alguma coisa houvesse. Mas a coisa ficou tão grande que no fim qualquer coisa que pudesse haver ficou desmoralizada.

E assim passam os dias e os anos, de escândalo em escândalo.

O fato: É óbvio que eles também fizeram. Todos eles fazem. Nunca acredite num político que diz que não faz. Aliás, desconfie de cara. O "eles também" é um ótimo motivo pra ficar de olho em qualquer governo - inclusive e principalmente aquele no qual você votou. Não cabe lógica de torcida nisso: o melhor que você pode fazer por um político que você elegeu é ficar de olho no que ele faz. Fiscalizando-o, e fazendo-o saber disso, você o estimula a manter pelo menos a aparência de honestidade pra não dar na sua vista.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Tadinha da Suécia!!!!

Título da inacreditável Agência Brasil:

Brasil é vanguarda em instrumentos públicos de informação para o cidadão

A notícia trata do projeto de lei que será enviado ao Congresso até o final deste mês tratando do direito de acesso a informações públicas. O que é muito legal, porque é o cumprimento de uma promessa que o Lula fez em 2006 para entregar em 2007. E é mais legal ainda porque vários países, incluindo o Zimbábue e o Uruguai, já fizeram lei de acesso antes do Brasil.

Veja só: a Suécia tem uma lei de acesso desde 1766. Há dez anos, é possível solicitar até os e-mails de autoridades porque eles são considerados documentos públicos. Os Estados Unidos têm lei de acesso desde 1966. O primeiro ato do Obama foi mandar que a Justiça tivesse sempre em conta o princípio de que a prioridade é a informação chegar ao cidadão.

Aqui, na VANGUARDA dos instrumentos públicos de informação segundo a inacreditável Agência Brasil, nem o Senado sabe direito quantos diretores tem. Imagine o cidadão. Pior: a Transparência Brasil foi repetir neste ano o estudo feito em 2007 e 2008 sobre os orçamentos dos Legislativos. Deu com o nariz na porta em alguns lugares. E olha que estamos na VANGUARDA.

Tadinha da Suécia, onde eu pedi pra ver os documentos da entrada da minha tataravó no navio e pude folhear os originais (de 1891) em 15 minutos. A Suécia ainda tem muito a aprender com o Brasil.

Festival É Tudo Mentira (4): "O Estado sou eu"

Na quarta parte do festival É Tudo Mentira, vamos conversar sobre um tipo de falácia comum na política desde Luís 14: a personalização das instituições. Isso tem se tornado cada vez mais comum nos três Poderes brasileiros, por mais que tenham degolado o absolutismo monárquico na Revolução Francesa.

A prática se manifesta de formas diversas, mas muito parecidas.

Se alguém critica as políticas do governo federal, o presidente Lula fala que essa pessoa "torce contra o Brasil". Ou seja: para ele, o Brasil é o governo dele.

Se o juiz Fausto de Sanctis manda prender o banqueiro Daniel Dantas duas vezes e o banqueiro recorre ao STF pra obter habeas corpus, o loquaz e ubíquo Gilmar Mendes lasca que o juiz "tentou desmoralizar o Supremo". Ou seja: o Supremo é ele.

Se aparecem críticas muito pontuais a gastos absurdos do Senado, membros do Congresso saem dizendo que estão "querendo fechar o Legislativo" e "trazer de volta a ditadura". Mostrar aos eleitores que processos eles respondem, dizem eles, é coisa da ditadura. Ou seja: o Legislativo é o descontrole dos gastos ou dos crimes.

Você já ouviu frases parecidas. Quem discorda de pontos das políticas públicas ou critica gastos é "inimigo do povo", "quer acabar com a democracia", "está contra o estado democrático de direito", "quer instaurar um estado policial", "é tudo coisa da imprensa golpista". Ainda ontem eu vi o pessoal do debate a favor dizendo que quem é contra a obrigatoriedade do diploma para jornalistas é a favor da burrice ou quer a ditadura de volta - ué, não tinha sido a ditadura que aprovou a obrigatoriedade?

Isso alimenta o esporte nacional dos gre-nais e outros demônios. É o que faz jornalistas serem agredidos em frente ao comitê eleitoral. Isso também se manifesta na cultura do "na dúvida, proíba-se", comportamento usado pelas autoridades sempre que não sabem o que fazer a respeito de alguma situação que sai de seu controle.

Porque aqui no Brasil é assim: se o estado não consegue fiscalizar o trânsito pra evitar mortes, proíbe-se a bebida. Se o jornal fala mal de um político em época de eleição, manda-se apreender a tiragem (e depois, quando fica feio, volta-se atrás). Se não se consegue fiscalizar o que os políticos fazem na internet, proíbe-se o uso da Web nas campanhas (e depois, quando fica feio, volta-se atrás). Se a modelo posa seminua com um terço, proíbe-se a reprodução da foto. Proíbe-se até videogame.

É isso que faz trocar a política pública pela politicagem rasa, enfim.

São os ecos de Luís 14.

O fato: Quem fala uma batatada dessas está querendo, na verdade, intimidar quem lhe critica. É o velho carteiraço, somado ao patrimonialismo do Estado brasileiro. Isso sinaliza uma fraqueza do conceito de democracia entre quem mais devia zelar por ele. É triste. Mas também se deve observar que a forma como se faz críticas no Brasil muitas vezes age do mesmo jeito - desqualificando completamente. Falta mais inteligência no debate nacional. Isso inclui a cabeça fria para nenhum dos lados ultrapassar a linha muito clara que existe entre crítica e ofensa.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Festival É Tudo Mentira (3): Estatísticas

A terceira parte do festival que comemora o dia dos bobos trata das mentiras numéricas. Em 1954, o estatístico americano Darrell Huff publicou um livro chamado "Como Mentir com Estatísticas". Nele, Huff explica conceitos da estatística, mostra como lê-las e não deixa dúvida alguma: bem torturados, os números revelam o que o freguês quiser. E os fregueses políticos SEMPRE querem.

Vamos começar pelo mais quente. Vocês viram ontem a notícia de que um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontou que o Brasil tem menos funcionários públicos do que os Estados Unidos? Isso bem no meio de um escândalo justamente relacionado à abundância de diretores no Senado e de recorrentes notícias sobre o inchaço de indicações políticas no governo.

Não é o primeiro estudo do gênero. Em janeiro, o mesmo instituto lançou um estudo noticiado da seguinte forma: "Brasil tem eficiência no gasto em saúde, diz estudo do Ipea".

Esse tipo de manipulação de dados faz um sucesso danado em debate de candidatos - mal posso esperar os de 2010.

Ora, você deve conhecer as queixas de alguém que enfrenta as filas do SUS, se é que não se queixa sozinho. Então, na época, eu abri o estudo do IPEA para dissecá-lo. Cheguei à seguinte conclusão: a eficiência no gasto apontada pelo estudo significa que a situação é tão precária que qualquer coisa que se gaste a mais já dá uma boa melhorada.

Procurei o estudo original do IPEA sobre os servidores. Em 2007, o país ultrapassou a marca dos 10 milhões de barnabés. Eles compararam a proporção de servidores públicos no Brasil com a proporção em outros países, quase todos menores que o Brasil. A máquina pública nos Estados Unidos é realmente muito maior que a brasileira - eu imagino a quantidade de arquivistas que eles devem contratar pra manter organizados seus documentos, que qualquer cidadão pode solicitar. No Brasil, essa estrutura é precária.

O que o estudo não leva em conta, portanto, são as medidas de eficiência dessa máquina. Não adianta ter um monte de gente e continuar funcionando mal. Encher de gente por encher de gente é agir como aquele prefeito do interior de piada, que em seu primeiro dia de governo foi à praça pública queimar uma pilha de pneus. "Na minha campanha, eu prometi transformar São Pafúncio do Passa Longe em uma cidade grande, e toda metrópole tem poluição", justificou-se.

É que nem o Senado: tem dois diretores para cada senador, custa o equivalente a uma Ferrari, mas presta serviços de fusquinha detonado com problemas no escapamento. É mais ou menos essa a crítica feita pelo professor José Pastore ao estudo do IPEA.

Mas experimente por exemplo criar indicadores para avaliar essa eficiência. O pau come. Especialmente quando se trata de avaliação do ensino público ou da produtividade dos servidores. Sempre virão os paladinos da qualidade subjetiva dizendo que ela não pode ser reduzida a números. Até certo ponto, a crítica faz sentido: o número não diz tudo. Mas em boa parte ela não faz sentido: um conjunto bem escolhido de indicadores sempre diz alguma coisa a quem sabe lê-lo. Muitas vezes, porém, essa crítica arrasadora vem pra evitar qualquer tipo de avaliação que ameace práticas confortáveis. Por exemplo, o Senado detestou quando o estudo que eu coordenei mostrou que ele era a Casa legislativa mais cara do mundo, proporcionalmente.

Outra forma de estatística favorita entre os políticos e seus marqueteiros são as sondagens de opinião pública. Aí vai uma longa discussão para a qual não tenho muito espaço neste post. Mas cabe avaliar uma, que vem ganhando popularidade: as sondagens via internet.

No início de junho de 2007, uma polêmica cercava a não-renovação da concessão da emissora venezuelana Radio Caracas Televisión – identificada pelo presidente do país, Hugo Chávez, como uma das principais opositoras de seu regime. Os defensores da decisão de cassar a concessão argumentam que a licença havia vencido e que Chávez agiu perfeitamente dentro da lei. Os críticos da decisão afirmam que tirar a emissora do ar agrediu a liberdade de expressão – ainda que sua licença pudesse estar vencida, seria abuso da autoridade presidencial tirar do ar um canal crítico para pôr no ar uma TV “chapa-branca”.

Por aquela época, a embaixada da Venezuela em Brasília propôs a seguinte questão numa enquete em seu website:

    Você considera que a não-renovação da concessão do sinal radioelétrico do Estado à RCTV é:

    Um ato de soberania legislativa do Estado
    A expressão da vontade popular
    Um atentado à liberdade de expressão
    Não sabe

Fiquei sabendo da enquete no dia 4, a partir do blog do professor Orlando Tambosi, da UFSC – um ácido crítico de Chávez. Não foi o único blog que convidou à manifestação de contrariedade ao ato. Quando votei, havia 68,7% de votos na opção “Um atentado à liberdade de expressão”. À noite, já eram 77,28%. Na manhã do dia 5, eram 83,7%.

Pouco depois, misteriosamente, o placar virou e a opção “Um ato de soberania do Estado” ficou com 82% dos votos. No dia 6, a enquete foi fechada e ficou no arquivo do site.

Como era possível votar mais de uma vez, não é impossível que muitas pessoas tenham votado diversas vezes, contra, a favor ou ambos. Estão em seu pleno direito de manifestação, se a formulação técnica da enquete permite. Mas isso demonstra que uma pesquisa online não tem exatamente os mesmos critérios de uma pesquisa de opinião feita com rigor. Serve mais como passatempo do que como informação.

O fato: Os números não mentem, mas bem torturados eles revelam o que o freguês quiser. Pra saber o que está por trás deles, tem que ficar ligado. Tem que olhar como foi feito o número. Tem que ler o estudo. Às vezes, ele diz mais pelo que não é dito do que pelo que é efetivamente dito. Lembre que 100% dos pacientes de câncer desenvolveram a doença após anos bebendo água todo dia. Nem por isso a água é cancerígena.

A sinceridade do Lula

Numa entrevista ao lado do Obama, hoje, o premiê britânico Gordon Brown contou uma frase que Lula lhe disse reservadamente:

    "Eu estive na semana passada no Brasil e eu acho que o presidente Lula vai me perdoar por citá-lo. Ele me disse: 'Quando eu era sindicalista, eu culpava o governo. Quando eu era da oposição, eu culpava o governo. Quando eu virei governo, eu culpei a Europa e os Estados Unidos'", disse Brown, arrancando sorrisos de Obama.

E não é verdade?

As melhores histórias da Marvel

A Marvel lançou um site com suas 70 melhores histórias. Quatro delas foram traduzidas por mim no Brasil.

terça-feira, 31 de março de 2009

Festival É Tudo Mentira (2): "Seis não; meia dúzia"

A segunda parte do festival, comemorando a semana de Primeiro de Abril e do centenário do Pinóquio, trata de um hábito peculiar na política: a estratégia semântica de trocar seis por meia dúzia quando o nome popular da prática se torna um fardo pesado demais para carregar.

O campeão disso é Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT, para quem a origem dos recursos do Valerioduto não era o caixa-dois. Porque caixa-dois é uma coisa feia, ilegal, suja. Não, senhor: não era caixa-dois, eram "recursos não contabilizados". No caso do mensalão, até hoje há uma disputa de filigrana segundo a qual o mensalão não existiu porque os pagamentos a partidos para votar projetos de interesse do governo não eram mensais. O Marco Aurélio Garcia deu essa versão na última Piauí:

    Marco Aurélio foi coordenador da campanha de reeleição de Lula, em 2006. A primeira dificuldade que encontrou então, no terreno político, foi tratar do escândalo do mensalão, os milhões de reais pagos a parlamentares, muitos deles do PT, para votar a favor de propostas do governo. Ele diz que o mensalão, dessa forma, não existiu. Mas admite que o dinheiro existiu, era proveniente do caixa dois de campanhas, e nessa condição foi distribuído a parlamentares.

Outra forma popular de trocar seis por meia dúzia em política é trocar o nome de instituições, programas e impostos com fins diversos.

Em 1993, o governo criou o Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras. Incidindo com uma alíquota pequena a cada saque, cada cheque, cada depósito e cada pagamento de conta, era uma maneira engenhosa de tomar uns trocados dos brasileiros sem eles sentirem muito. De quebra, o governo também ganhava um instrumento poderoso para monitorar movimentos financeiros no sistema bancário.

A primeira mentira nisso era o "Provisório" no nome. Sim, era provisório: ele tinha duração definida. Mas podia ser renovado logo depois, indefinidamente, conforme o governo propusesse ao Congresso. A segunda medida veio poucos anos depois, quando a palavra "Imposto" foi trocada por "Contribuição". Viu, não é mais um imposto: esse que você está pagando é uma contribuição. (Outra mentira com a CPMF foi a justificativa de destinar seus recursos à saúde. Ao longo de mais de uma década, apenas uma fração do dinheiro foi para a saúde.)

E qualquer um que tenha crescido em alguma década antes dessa já ouviu falar em Febem, não é? Eram as Fundações Estaduais para o Bem-Estar do Menor. O nome já era mentiroso: bem-estar era o que eles menos tinham por lá, especialmente quando queimavam os colchões ou cortavam a cabeça dos coleguinhas pra protestar.

Mas veio a mudança de século e o predomínio do politicamente correto. A palavra "Menor" ficou estigmatizada (eu devia reclamar; minha primeira caderneta de poupança, aberta quando eu tinha 3 anos, incluía a palavra ao final do meu nome). "Menor infrator", mais ainda. Uma amiga assistente social, por dentro da última moda do palavreado, me disse há alguns anos que uma aluna trabalhava com "adolescentes em situação de conflito com a lei, sob medida socioeducativa de privação da liberdade, sem lazer externo". Baixou-me o espírito de Zé Simão. Arregalei os olhos e comecei a rir: "TUCANARAM O PIVETE PRESO!"

Com o veto politicamente correto à palavra "menor" e a situação deteriorando, o nome "Febem" virou anátema. Era feio um governo ter uma Febem no estado. O negócio era reformar as Febens. Então, marqueteiros criativos em toda parte descobriram uma maneira engenhosa de contornar a situação: criaram nomes fofinhos para elas. No Rio Grande do Sul, é a FASE (Fundação de Atendimento Socioeducativo). Em São Paulo, é Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente). É só uma fase, tá em casa.

Os nomes fofos, porém, não resolveram o problema com sua varinha de condão. Colchões continuam sendo queimados, internos continuam fugindo e cada vez mais há inclusive infiltração de facções criminosas dos presídios nas ex-Febens.

Uma terceira maneira de trocar seis por meia dúzia na política é também incentivada pelos marqueteiros: trocar o nome de uma política pública de um governo anterior e continuar fazendo a mesma coisa.

Um exemplo disso é o Bolsa-Família, que agregou vários programas já iniciados antes do governo Lula. Mas gosto bastante da questão do transporte urbano, então vou falar dos corredores de ônibus de São Paulo.

Várias cidades dispõem de corredores de ônibus, há anos. São muito úteis, aumentando a velocidade média dos veículos que transportam um número maior de passageiros. Porto Alegre tem, Curitiba tem. São Paulo não tinha, até 2004. Quando eles foram feitos aqui, ganharam o nome marqueteiro de "Passa-Rápido". Depois que mudou o governo, o nome caiu em desuso. Aliás, construir corredores também caiu em desuso. Mas quando o prefeito fala no assunto, ele fala hoje em "corredores".

Nesse caso, especialmente, eu acho mais adequado. Tenho horror a essas marquetices.

O fato: Desde 1595, quando Shakespeare publicou a peça "Romeu e Julieta", sabe-se que "uma rosa, com qualquer outro nome, teria o mesmo doce perfume". Não se deixe enganar pelas armadilhas semânticas de marqueteiros e outros espertos.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Festival É Tudo Mentira (1): "Eu Não Sabia"

Na semana do Primeiro de Abril, inauguro aqui uma série de posts comemorativos com as principais mentiras estruturais da política. Em cada um dos dias desta semana, exploraremos uma tipologia de mentira política.

Começaremos com a mais comum de todas. Trata-se do "Eu Não Sabia" e seus primos "nossa, que distração a minha", "não é meu, eu passei pro nome de (fill the blanks)" e "assinei, mas acontece que eu não li".

(O "nada foi provado" é bastante próximo, mas não chega a ser igual. Ele não tenta tirar o do político da reta, apenas nega a existência de uma reta.)

Quando se fala em "Eu Não Sabia", a primeira lembrança que vem é a versão do Lula a respeito de qualquer escândalo que acontece em seu governo. Não sabia, foi traído, etc. Nem tem mais graça usá-lo de exemplo, até porque, a julgar pelo que todos dizem, ninguém sabe de nada neste país. Não é só um nem dois: são todos.

Veja por exemplo o caso do deputado castelão Edmar Moreira. A defesa dele foi a de que o castelo não era dele, e sim de seus filhos. O ministro da tapioca não sabia que usou o cartão corporativo. O Senado sequer sabia quantos diretores tinha, veja só. Sem falar na secretaria da educação de São Paulo, que botou nas escolas um livro com dois paraguais e pôs a culpa em quem imprimiu, depois em quem diagramou. Só quando a coisa ficou feia é que caiu a secretária que, em última análise, era responsável por essa lambança toda.

Em 2000, quando eu procurava funcionários fantasmas, com um colega, na Assembléia Legislativa de São Paulo, pedimos para ver o livro-ponto do gabinete de um deputado. Ele primeiro disse que não tinha a chave de onde estava guardado, mas depois de apelarmos para sua vaidade e autoridade sobre seus funcionários, ele lembrou onde estava a chave. Buscou o livro-ponto e começamos a analisá-lo juntos.

Era final de junho. Um dos funcionários estivera de férias em abril. Todas as suas presenças de maio estavam assinadas, mas nenhuma de junho. Quando perguntamos ao deputado sobre isso, ele responde: "Não acredito! Vou chamar esse sem-vergonha e dizer a ele: seu filho de uma égua, então você me vem trabalhar e não me assina o ponto? Tá querendo me foder?"

Claro que ele disse que o funcionário não apenas trabalhava como também era exemplar em sua competência e assiduidade. Pena que esquecia de assinar o ponto às vezes, por semanas a fio, veja só. Fosfosol pra ele.

Em 2001, quando houve o escândalo da violação do painel do Senado pra fuçar quem votou contra a cassação do Luiz Estevão, houve um caso edificante. O então senador José Roberto Arruda, hoje governador do Distrito Federal, foi acusado de ter sido um dos que viram a lista. Ele foi à tribuna para negar tudo: não vi, não recebi, estou tranqüilo, fui injustiçado, seria burrice, são fatos falsos. (Leia aqui o discurso.)

Cinco dias depois, quando todas as evidências negavam o que ele disse, ele voltou à tribuna chorando e pra dizer agora o oposto do que disse antes: eu vi, eu recebi, quero poder dormir tranquilo, estou arrependido, foi por vaidade, os fatos são verdadeiros. (Leia aqui o discurso.)

Um mês depois, ele se viu forçado a renunciar. Mas com altivez: "não roubei, não matei, não desviei dinheiro público, mas cometi um grande erro, talvez o maior da minha vida". (Leia aqui o discurso.)

O fato: não adianta eles dizerem que não sabiam e que não é com eles. Duvido que não soubessem, mas mesmo assim eles são, em última análise, responsáveis pelo que acontece em seu mandato. Se um subalterno deles apronta, ainda assim foram eles que o contrataram e é em nome deles que o picareta trabalha.

Quais são seus casos favoritos desse tipo de mentira? Conte aqui nos comentários.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Crônica de uma morte anunciada

Em junho do ano passado, subi o morro da Providência pra fazer uma reportagem sobre a morte de três rapazes entregues por militares à gangue que comanda uma favela rival. Hoje, a favela volta ao noticiário porque a polícia deu uma batida e matou um guri acusado de ser traficante.

Vocês lembram do caso das três mortes? Era um caso complicado. O morro estava em obras, num projeto apadrinhado pelo senador Marcello Crivella e tocado pelo Exército. Como fora usado em propaganda eleitoral do senador para prefeito, o projeto foi suspenso. Como os militares causaram a morte dos guris, descobriu-se que o Exército não tinha nada que estar lá - só estava porque o projeto era do senador, que é do partido do vice-presidente, que foi ministro da Defesa.

Pros milicos, a suspensão da obra foi uma bênção. É bom pro pessoal esquecer o fiasco. Pra favela, porém, foi um desastre. A obra empregava 150 garotos da favela, e estimava-se que um terço deles em algum ponto da curta vida havia trabalhado para o tráfico. Nesse trampo, independente de seu mérito político, eles tinham a chance tripla de ajudar a comunidade, sustentar a família e aprender uma outra profissão.

Sem o trabalho, eles mesmo diziam, estariam expostos ao desemprego e aos pedidos de favores de caras com quem cresceram juntos. Favores que podiam render uns trocados muito bem-vindos. Favores perigosos.

Conversei com alguns desses caras, inclusive com um que se identificou como irmão mais velho de Marcos Paulo, um dos três guris que morreram. Aos vinte e seis anos, o cara tinha quatro filhos. Até ontem, ele tinha mais um irmão, que foi exatamente o sujeito que morreu baleado por policiais. A mãe deles nega que ele fosse traficante. A polícia diz que estava com armas e drogas.

Depois das mortes dos guris, no ano passado, o Exército desocupou a favela e aos poucos a imprensa tirou o olho de lá. Tem outras desgraças pra serem cobertas. A eleição passou; embora Crivella tenha perdido, ele continua com toda a mordomia que o Senado tem a oferecer a seus membros. O Exército está tranqüilo, até trocaram o juiz que cuida do processo contra os milicos que jogaram os guris na mão dos traficantes da outra favela.

Só quem se ferrou foi quem ficou na favela. Os empregos saíram, os tiroteios voltaram. Dona Maria de Fátima, por exemplo, perdeu dois filhos em menos de um ano.