Muita torcida e pouco uso da informação, os males do Brasil são. O uso da lógica de torcida como método administrativo deixou as metáforas deste blog e entrou no discurso do ministro Franklin Martins, ao comentar a informação de que a Petrobras tomou um empréstimo de R$ 2 bilhões na Caixa Econômica Federal para financiar crédito de curto prazo:
- "Quem torce contra a Petrobrás torce contra o Brasil", disse. "A Petrobras é uma empresa sólida, séria, forte e orgulho do País."
Peraí, vamos por partes.
É exatamente pela reputação sólida e forte da Petrobras, mais do que pelo volume do aporte (pouco para uma empresa desse tamanho), que o empréstimo chamou a atenção. Questionar isso não é "torcer contra"; é questionar.
Em 11 de novembro, duas semanas antes do anúncio do empréstimo, a empresa anunciou ao mercado financeiro, em carta de seu presidente, José Sergio Gabrielli de Azevedo:
- Prezados acionistas e investidores,
É com orgulho que apresento o maior lucro trimestral da história da Petrobras. Duplicamos nosso lucro líquido em comparação com o mesmo período de 2007, atingindo R$ 10,9 bilhões.
Esse resultado é fruto da excelência operacional, crescimento da produção, das vendas e da disciplina de capital acumulados ao longo de anos.
Mais adiante, o mesmo documento apresenta os balanços e mostra que, sim, a empresa opera com endividamento para se financiar - como qualquer outra. Quase um quarto da dívida total da empresa, de R$ 48,3 bilhões, está no curto prazo. Dois bilhões, pra eles, significam mais ou menos o mesmo que R$ 30 pra quem deve o aluguel. No último trimestre, diz o documento,
- O endividamento líquido do Sistema Petrobras aumentou 21% em relação à 30.06.2008, em decorrência da depreciação do Real no período, além de captações das SPE.
O nível de endividamento, medido através do índice da dívida líquida/EBITDA aumentou de 0,48 em 30.06.2008 para 0,59 em 30.09.2008. A estrutura de capital está representada por 46% de participação de capitais de terceiros, mantendo-se estável se comparada a 30.06.2008.
Quando a empresa deu sua versão sobre o empréstimo, explicou que o lucro fabuloso foi por conta da flutuação do dólar, que costuma captar dinheiro para operações de curto prazo no mercado financeiro e que está evitando se expor ao risco cambial.
Pelo que lembro das aulas de contabilidade no segundo grau, a explicação tem lá seu sentido. Eles têm como pagar. Mas também tem sentido questionar isso. Num momento em que o governo sai em socorro de vários setores (menos, até agora, os de cervejas e gibis, como observei outro dia) com operações sempre na casa dos alguns bilhões, um aporte de números semelhantes a uma empresa do peso da Petrobras de fato parece à primeira vista indicar que ela tem tanto risco de quebrar quanto uma dessas pobres e coitadas empresas que foram recentemente pedir uma ajudinha ao governo pra não quebrar - digamos, uma GM ou uma Ford.
Se a porca torce o rabo, é na parte que eu não lembro das minhas aulas de contabilidade do segundo grau. Devia ter assistido com mais afinco, mas agora já faz metade da minha idade que eu perdi a chance.
Ocorre que não era de contabilidade, e sim de política, que eu queria comentar aqui.
Apontar o dado e questioná-lo não me parece ser "torcer contra". O que me preocupa, mais do que a saúde financeira da Petrobras, é a grenalização do trato da informação. A informação circula, mas quando cai no debate público ela não é tratada como ferramenta de decisão, e sim como peça de propaganda ou bandeira clubística. Isso ocorre no governo, ocorre na oposição e ocorre nas melhores mesas de boteco do país inteiro. Vira carnaval. A oposição diz que é um absurdo, o governo diz que se torce contra. E a leigarada toma partido como quem escolhe seu time de futebol.
Sabe onde não ocorre a grenalização? No mercado financeiro, por exemplo. É trabalhando com a informação e com o conhecimento de como funciona a psicologia da política que os operadores ganham dinheiro mesmo em tempos de crise. Eles capitalizam a grenalização, simples assim. O discurso belicoso acaba funcionando basicamente como mais uma chave de fenda na caixa de ferramentas dos especuladores. Eles sabem jogar com informação.
Outro elemento interessante nessa grenalização do trato da informação está em dois assuntos ambientais.
Durante meses, houve uma briga interna no governo sobre a concessão da licença ambiental para a construção da usina hidrelétrica de Jirau, na Amazônia. A licença ambiental é um documento que especifica o impacto no meio ambiente e os fatores de risco na construção. A Marina Silva caiu em parte porque era considerada lenta para carimbar o papel. O Carlos Minc, seu sucessor no ministério do meio ambiente, passou algum tempo batendo boca na imprensa com o Edison Lobão, do ministério da energia. Agora, o Ministério Público entrou na parada, processando o governo pela concessão da licença. Não entendo absolutamente nada de engenharia ambiental, então não tenho como ter opinião formada sobre se tem ou não que demorar mais ou menos a licença.
Não pude deixar de lembrar do analfabetismo funcional institucional e do caso Jirau quando li um pouco mais sobre o caso da tragédia catarinense, depois de quase uma semana meio longe da civilização. Aí, ao ler a edição Época que chegou hoje, trombei com uma boa entrevista com Moacyr Duarte, especialista em riscos. Vejam o que são as últimas duas perguntas e respostas:
- ÉPOCA – No caso de Santa Catarina, o senhor enxerga algo que era claramente uma prioridade que não recebeu a devida atenção?
Duarte – Era preciso melhorar muito o sistema de alerta, que pode ser um radar. A questão é que temos um sistema econômico de produção que vai, cada vez mais, oferecer situações críticas. Lá mesmo em Santa Catarina, desabou uma encosta que arrebentou um gasoduto que alimenta o sul do país com gás natural. Vão queimar óleo. A poluição atmosférica vai ao pico nos próximos 20 dias porque consertar o duto leva um dia, mas a encosta 20 dias.
ÉPOCA – O estudo de impacto ambiental daquele gasoduto não deveria ter previsto isso?
Duarte – Sim, mas falta integração em todo o país. Os estudos de impacto ambiental, o Eia-Rima, uma exigência legal no país, também são estudos de risco. Por que essas informações não são repassadas aos bombeiros e aos órgãos de defesa civil? Por que essas informações ficam arquivadas nos órgãos ambientais em vez de ser distribuídas aos usuários práticos desses estudos? Esse sistema é tão ruim que, se surge uma indústria a 50 metros da outra, é feito um segundo estudo que é quase cópia do primeiro. Não há estoque de conhecimento. Os incessantes pedidos de estudos ambientais não equivalem a acúmulo de conhecimento. São documentos empilhados, jamais repassados de forma sistemática para os órgãos encarregados de fazer o planejamento contra essas catástrofes.
Ou seja: um documento importante e que causa tanta polêmica costuma ser guardado pro-forma, sem se tornar um instrumento de planejamento. É nessas horas que o analfabetismo funcional institucional causa prejuízos altos.
Por sorte, em Santa Catarina ainda não apareceu a lógica de torcida (até onde eu tenha lido). Mas é um caso tipo "bomba atômica": só numa tragédia muito grande é que se busca soluções contornando o analfabetismo funcional institucional. Apenas trabalhar inteligentemente com informação não garante que os problemas não ocorram: apenas melhora o planejamento para evitar as conseqüências evitáveis.
Ocorre que, com o analfabetismo funcional institucional, geralmente se espera o desastre pra depois correr atrás da solução, desesperadamente. E, no caso da Petrobras, se todo mundo está desconfiado, acusa-se-os de "torcer contra". Infelizmente, costuma funcionar quando se está jogando para a torcida.
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