quarta-feira, 16 de abril de 2008

Analfabetismo funcional institucional

A boa notícia: o Conselho de Direitos Humanos da ONU recomendou que o Brasil se comprometa com a aprovação de uma lei de acesso a informações públicas. Informa o Ricardo Meirelles:

    O Conselho de Direitos Humanos da ONU concluiu hoje a análise sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. Desse processo resulta um relatório com algumas recomendações, todas acatadas pelo governo brasileiro. Uma delas, a de número 10 (feita por representantes do Peru...) diz o seguinte: "Do its utmost to ensure that Congress adopt the law on access of citizens to public information"

Você pode baixar o documento aqui.

A má notícia: não é a primeira vez em que um documento tratando do assunto é assinado pelo Brasil. E mesmo assim ainda não temos uma lei de acesso. Se dependesse de assinar documento e fazer lei, o Brasil era um país avançadíssimo.

Essa coisa de assinar sem se comprometer, somada à forma peculiar como as autoridades brasileiras tratam informações, dá a impressão de ser uma doença política e institucional análoga ao analfabetismo funcional. O Instituto Paulo Montenegro define assim um analfabeto funcional:

    uma pessoa que, mesmo sabendo ler e escrever frases simples, não possui as habilidades necessárias para satisfazer as demandas do seu dia-a-dia e se desenvolver pessoal e profissionalmente.

Uma das mais fortes manifestações desse analfabetismo funcional é a forma como as autoridades brasileiras tratam questões de informações públicas e dados sigilosos. Classifica-se como sigiloso o que devia ser público e o que por motivos vários merece reserva é tratado sem grande cautela.

Considere alguns fatos dos últimos tempos. Vamos começar pelo mais recente, o da divulgação sobre o campo de petróleo.

O diretor-geral da ANP (Agência Nacional do Petróleo), Haroldo Lima, falou numa palestra sobre uma megarreserva que estaria prestes a ser explorada na Bacia de Santos. Isso gerou especulação na Bolsa, até que a Petrobras veio a público dizer que ainda vai demorar uns três meses pra ter 100% de embasamento técnico para comemorar.

Pois o dr.Lima, que em seu perfil no site da ANP é apresentado como engenheiro eletricista, ex-líder estudantil e ex-deputado, eximiu-se de responsabilidade sobre o anúncio: "Isso não é problema meu. É um problema da Bolsa de Valores. Nem sei onde fica essa Bolsa de Valores", disse.


Segundo o dr.Lima, a informação já havia sido publicada pela revista especializada World Oil, o que é verdade. Portanto, não seria nada novo. O que ele não pensou foi que sua humilde palavra de diretor-geral da agência que regula o petróleo no Brasil poderia dar tanto peso de mercado a essa informação. Por mais que os especialistas já soubessem, ela ainda não estava confirmada. Se uma autoridade cita, sacramenta.

"Eu sou autoridade", justificou. E é exatamente por isso que ele devia ser mais atento, pra dizer o mínimo. "Não sou subordinado à Comissão de Valores Mobiliários", observou. Mas não precisa e nem deve. O mercado financeiro, regulamentado pela CVM, sabe trabalhar muito bem com informação - e o melhor jeito de lidar com isso é saber manejar bem as mesmas ferramentas.

O comentário sobre nem saber onde fica a Bolsa pode ser gracioso e passar uma imagem de quem poderia estar conversando conosco no boteco. Mas isso não o exime de saber que palavras de autoridades têm conseqüências. Ainda mais tendo sido político por tanto tempo.

Deixando de lado o dr. Lima, mas ainda no campo do petróleo, não se pode esquecer o caso do roubo dos laptops dentro dos contâineres da Halliburton, em fevereiro. Vá lá: a investigação classificou como roubo comum. Mesmo sem precisar colocar isso em questão ("Esta certeza definitiva das autoridades é reconfortante", escreveu o Ryff), o caso demonstrou que a segurança de informações na Petrobras é frágil, pra dizer o mínimo. A ANP poderia determinar procedimentos, mas o dr. Lima precisa primeiro saber lidar com informação.

Não vou tomar o tempo de vocês falando das implicações desse analfabetismo funcional institucional no caso do sigilo dos cartões corporativos. Já escrevi bastante sobre isso. Também não vou discorrer sobre o caso da não-prestação de contas dos sindicatos. Também já escrevi sobre isso. Aliás, a própria polêmica conceitual de dossiê versus banco de dados também tem a ver com o analfabetismo funcional institucional. Só causou polêmica por isso.

Como também já escrevi antes, os conceitos de informações públicas e sigilosas parecem sofisticados demais para o Brasil e para a classe política brasileira.

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