quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Tortura, impunidade e chuva na moleira


Mais um guri foi torturado por milicos no Rio de Janeiro. Entre as agressões que sofreu, eles teriam jogado ácido no seu rosto. Ele pode perder a visão.

Tudo bem que ele não é nenhum anjo e nem foi muito esperto: havia pulado o muro do quartel com um amigo pra fumar maconha lá dentro. Mas ainda assim a reação dos milicos foi completamente descabida. Sádica. Tanto quanto a dos seus colegas há alguns meses, quando montavam guarda no Morro da Providência, bateram boca com outros guris que voltavam de uma balada e resolveram "passar um corretivo" neles por meio de surra e entrega deles a criminosos de uma favela rival, que os torturaram barbaramente.

O novo caso de abuso de "otoridade", a poucos quilômetros de distância do outro, vem num momento em que algo conexo vem sendo discutido em esferas mais altas. Afinal, deve-se ou não reabrir os processos contra os militares acusados de tortura no regime militar? Reabri-los é olhar pra trás, como diz o ministro da Defesa, Nelson Jobim, ou a garantia do direito de saber a verdade, como diz o ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi?

Enquanto os homens de gravata batem boca, e vai haver uma ocasião no Senado em breve para baterem boca sem ser pelo intermédio de jornalistas, a coisa continua como está para ver como é que fica. E o "como está" acaba, em última análise, dando margem a esse caldo de cultura que faz com que rapazes pobres de farda julguem que não há problema algum em torturar rapazes pobres à paisana. Todos eles são rapazes pobres, geralmente. Mas a farda dá "otoridade".

No final de junho, estive no Rio de Janeiro fazendo algumas entrevistas no Morro da Providência para uma reportagem do Los Angeles Times. Conversei com as mães dos rapazes lá mortos e com os moradores de casinhas que estavam sendo reforçadas para que não fossem perfuradas à bala nos tiroteios entre polícia e traficantes. Uma das moradoras me mostrou buracos de bala na parede do quarto de sua filha, centímetros acima da linha do colchão.

Os militares estavam lá montando guarda enquanto administravam um projeto de reforma das casas, o chamado Cimento Social. Era uma organização meio estranha, porque o orçamento era necessariamente administrado pelo Exército e o projeto era bancado pelo senador Marcelo Crivella, do partido do vice-presidente - e antecessor de Jobim na Defesa - José Alencar. Ah, sim. Crivella também era pré-candidato à Prefeitura do Rio neste ano.

De repente, os milicos jogam os guris pra morrer nas mãos dos traficantes da favela rival. Aí, todo mundo olha pra Providência. O que eles estavam fazendo lá? Guardando o Cimento Social. Que obra é essa? É aquela que o Crivella está usando em santinhos pra concorrer a prefeito. Aí todos ficam indignados: é uso eleitoral. E Crivella fazia uso eleitoral mesmo. Aí, a Justiça Eleitoral manda cancelar o projeto até o fim das eleições. E as obras páram.

Saiu o Exército, voltaram os tiroteios entre polícia e traficantes. Dez dias depois da eleição, um homem morreu numa troca de tiros. Talvez tenha sobrado alguma bala na parede da casa da falante senhora que me mostrou os buracos de tiroteios anteriores, não sei.

O primeiro turno foi dia 5 de outubro, há um mês. Crivella perdeu a eleição, mas continua com seu cargo de senador. Até hoje, não li nada sobre se as obras das casinhas da Providência vão ou não ser retomadas. Tem chuva em janeiro, então eles devem estar se preparando pra bala na parede e chuva na moleira.

Na época, falou-se que foi um alívio para o Exército sair da Providência, pra evitar a animosidade e tentar dar uma abafadinha. Eles só voltam se o governo mandar. Não sei se o governo vai mandar que eles voltem, pra evitar mais desgaste. Ainda mais agora, que torturaram mais um. Como já passou a eleição e ele perdeu, também, possivelmente nem o Crivella tem pressa.

Em setembro, quando quase não se falava mais no assunto, o primeiro juiz que cuidou do processo das mortes, sendo contundente no interrogatório do tenente Ghidetti, foi afastado do caso pouco tempo depois de o comandante do Comando Militar do Leste (CML), general-de-exército Luiz Cesário da Silveira Filho, pedir ao TRF2 que trocasse o juiz.

Aposto uma barrinha de cereal: tal como ocorreu com as torturas da ditadura, o governo vai deixar como está pra ver como é que fica. O caldo da cultura da impunidade só engrossa. E a falação dos cavalheiros de gravata e farda só se arrasta. O mundo, enfim, gira em torno da dança das cadeiras deles.

Um comentário:

Barone disse...

Fugindo do tema central fico apenas pensando no Rio de Janeiro. Há pouco um amigo carioca a quem disse que apoiava Gabeira me mandou o seguinte recado "Tomou hein...?". Pensei em responder, mas ganhei em calar-me. O que poderia eu dizer? O que será do Rio?