A terceira parte do festival que comemora o dia dos bobos trata das mentiras numéricas. Em 1954, o estatístico americano Darrell Huff publicou um livro chamado "Como Mentir com Estatísticas". Nele, Huff explica conceitos da estatística, mostra como lê-las e não deixa dúvida alguma: bem torturados, os números revelam o que o freguês quiser. E os fregueses políticos SEMPRE querem.
Vamos começar pelo mais quente. Vocês viram ontem a notícia de que um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontou que o Brasil tem menos funcionários públicos do que os Estados Unidos? Isso bem no meio de um escândalo justamente relacionado à abundância de diretores no Senado e de recorrentes notícias sobre o inchaço de indicações políticas no governo.
Não é o primeiro estudo do gênero. Em janeiro, o mesmo instituto lançou um estudo noticiado da seguinte forma: "Brasil tem eficiência no gasto em saúde, diz estudo do Ipea".
Esse tipo de manipulação de dados faz um sucesso danado em debate de candidatos - mal posso esperar os de 2010.
Ora, você deve conhecer as queixas de alguém que enfrenta as filas do SUS, se é que não se queixa sozinho. Então, na época, eu abri o estudo do IPEA para dissecá-lo. Cheguei à seguinte conclusão: a eficiência no gasto apontada pelo estudo significa que a situação é tão precária que qualquer coisa que se gaste a mais já dá uma boa melhorada.
Procurei o estudo original do IPEA sobre os servidores. Em 2007, o país ultrapassou a marca dos 10 milhões de barnabés. Eles compararam a proporção de servidores públicos no Brasil com a proporção em outros países, quase todos menores que o Brasil. A máquina pública nos Estados Unidos é realmente muito maior que a brasileira - eu imagino a quantidade de arquivistas que eles devem contratar pra manter organizados seus documentos, que qualquer cidadão pode solicitar. No Brasil, essa estrutura é precária.
O que o estudo não leva em conta, portanto, são as medidas de eficiência dessa máquina. Não adianta ter um monte de gente e continuar funcionando mal. Encher de gente por encher de gente é agir como aquele prefeito do interior de piada, que em seu primeiro dia de governo foi à praça pública queimar uma pilha de pneus. "Na minha campanha, eu prometi transformar São Pafúncio do Passa Longe em uma cidade grande, e toda metrópole tem poluição", justificou-se.
É que nem o Senado: tem dois diretores para cada senador, custa o equivalente a uma Ferrari, mas presta serviços de fusquinha detonado com problemas no escapamento. É mais ou menos essa a crítica feita pelo professor José Pastore ao estudo do IPEA.
Mas experimente por exemplo criar indicadores para avaliar essa eficiência. O pau come. Especialmente quando se trata de avaliação do ensino público ou da produtividade dos servidores. Sempre virão os paladinos da qualidade subjetiva dizendo que ela não pode ser reduzida a números. Até certo ponto, a crítica faz sentido: o número não diz tudo. Mas em boa parte ela não faz sentido: um conjunto bem escolhido de indicadores sempre diz alguma coisa a quem sabe lê-lo. Muitas vezes, porém, essa crítica arrasadora vem pra evitar qualquer tipo de avaliação que ameace práticas confortáveis. Por exemplo, o Senado detestou quando o estudo que eu coordenei mostrou que ele era a Casa legislativa mais cara do mundo, proporcionalmente.
Outra forma de estatística favorita entre os políticos e seus marqueteiros são as sondagens de opinião pública. Aí vai uma longa discussão para a qual não tenho muito espaço neste post. Mas cabe avaliar uma, que vem ganhando popularidade: as sondagens via internet.
No início de junho de 2007, uma polêmica cercava a não-renovação da concessão da emissora venezuelana Radio Caracas Televisión – identificada pelo presidente do país, Hugo Chávez, como uma das principais opositoras de seu regime. Os defensores da decisão de cassar a concessão argumentam que a licença havia vencido e que Chávez agiu perfeitamente dentro da lei. Os críticos da decisão afirmam que tirar a emissora do ar agrediu a liberdade de expressão – ainda que sua licença pudesse estar vencida, seria abuso da autoridade presidencial tirar do ar um canal crítico para pôr no ar uma TV “chapa-branca”.
Por aquela época, a embaixada da Venezuela em Brasília propôs a seguinte questão numa enquete em seu website:
- Você considera que a não-renovação da concessão do sinal radioelétrico do Estado à RCTV é:
Um ato de soberania legislativa do Estado
A expressão da vontade popular
Um atentado à liberdade de expressão
Não sabe
Fiquei sabendo da enquete no dia 4, a partir do blog do professor Orlando Tambosi, da UFSC – um ácido crítico de Chávez. Não foi o único blog que convidou à manifestação de contrariedade ao ato. Quando votei, havia 68,7% de votos na opção “Um atentado à liberdade de expressão”. À noite, já eram 77,28%. Na manhã do dia 5, eram 83,7%.
Pouco depois, misteriosamente, o placar virou e a opção “Um ato de soberania do Estado” ficou com 82% dos votos. No dia 6, a enquete foi fechada e ficou no arquivo do site.
Como era possível votar mais de uma vez, não é impossível que muitas pessoas tenham votado diversas vezes, contra, a favor ou ambos. Estão em seu pleno direito de manifestação, se a formulação técnica da enquete permite. Mas isso demonstra que uma pesquisa online não tem exatamente os mesmos critérios de uma pesquisa de opinião feita com rigor. Serve mais como passatempo do que como informação.
O fato: Os números não mentem, mas bem torturados eles revelam o que o freguês quiser. Pra saber o que está por trás deles, tem que ficar ligado. Tem que olhar como foi feito o número. Tem que ler o estudo. Às vezes, ele diz mais pelo que não é dito do que pelo que é efetivamente dito. Lembre que 100% dos pacientes de câncer desenvolveram a doença após anos bebendo água todo dia. Nem por isso a água é cancerígena.
- SÉRIE COMPLETA:
30 de março: "Eu Não Sabia"
31 de março: "Seis não; meia dúzia"
1° de abril: Estatísticas
2 de abril: "O Estado sou eu"
3 de abril: "Mas eles também!"
Um comentário:
Excelente, Marcelo.
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