A melhor surpresa que tive após participar do debate na MTV foi um scrap no Orkut, enviado pelo Adriano Garcia. Ele está perplexo com a forma como o poder é exercido no Brasil. Perguntou, por exemplo, se em minha opinião os partidos representados no Congresso têm de fato vontade política de votar uma reforma política. Também criticou o PT por, no poder, fazer mais ou menos o mesmo que o PSDB fazia - especialmente no tocante ao uso alegre de medidas provisórias. "Você não acha que o Brasil deveria pensar uma alternativa ao PSDB e ao PT?", pergunta ele.
Imagino que a perplexidade dele seja em boa parte a de todos nós. Não tenho como ter uma resposta ao mesmo tempo categórica e honesta, porque eu mesmo tenho muitas dúvidas. Abaixo, segue uma versão retrabalhada da reflexão que fiz na resposta a ele. Para ser honesta, minha resposta não é categórica.
Partidos, que são o único caminho para um cargo eletivo, são feitos por pessoas. Outros partidos, além do PT e do PSDB, existem em abundância no Brasil. Poucos são de fato representativos. Pode-se criar novos. A maior questão está na estrutura arraigada de relação entre os poderes. Hoje, mesmo se um partido "roots" como o PSTU, por exemplo, chegar ao poder, a forma de relação com o Congresso não mudaria muito. O Executivo sempre tem pressa, e as medidas provisórias passam a valer imediatamente no momento em que são editadas. Por isso o FHC usava, por isso o Lula usa. Por isso o próximo também usará.
A impressão que fica é a de que o PT criticava porque o brinquedo estava na mão de outro, mas o que mais queria é ele próprio brincar. E não é muito longe da realidade: o que uma oposição quer é ser situação. Eles não vão dizer isso claramente. Mas é verdade.
Eu não sei como resolver esse entrave. É preciso uma reforma, mas que reforma? Os representantes eleitos aprovariam uma coisa que lhes tirasse poder? O governo eleito deixaria de manobrar votações que lhe tirassem poder? Veja quanto do orçamento foi autorizada a execução, em termos de emendas propostas por parlamentares, para persuadir-lhes a votar favoravelmente aos interesses do governo na manutenção da CPMF - mesmo que não tenha funcionado, a fatura está sendo cobrada. É complicada a coisa.
Por isso é que eu sempre insisto em que a base de qualquer mudança é a fiscalização profunda e insistente do poder por parte dos cidadãos, cada vez mais.
O risco que se corre é o seguinte: adota-se a bandeira da reforma política como bala de prata pra resolver todos os problemas da política nacional. Ótimo. Mas que reforma? Que pontos? Com que nível de detalhe? Aí é que o bicho pega.
Sem fiscalização do eleitor, pode-se aprovar uma reforma política de ocasião e decretar acabados os problemas do Brasil. Veja como o TSE decretou acabados quase todos os problemas de corrupção do voto com a mera adoção da urna eletrônica, o que na prática tirou dos desconfiados a possibilidade de fiscalizar o resultado das eleições por meio de recontagem. Geralmente, balas de prata só costumam funcionar na ficção. Matam lobisomem, acertam índios à distância e tudo mais. Mas na realidade a coisa é bem diferente - porque, como dizia Garrincha, é preciso combinar com os russos.
Sem fiscalização aprofundada por parte dos cidadãos, os representantes têm como sua única obrigação para com o eleitor, na prática, aparecer de quatro em quatro anos para pedir seu voto. E, durante o mandato, fazer o que estiver ao seu alcance para manter a si e aos seus na cadeira. Isso, sem fiscalização popular que cobre a execução do objetivo do mandato (servir ao interesse público), acaba incentivando que a política vire um jogo das cadeiras onde o negócio é usar o que se tem à mão para manter o assento. É daí que vem a insatisfação dos cidadãos, porque isso transparece bastante.
É essa a origem da disputa pelo brinquedo. Ou seja: a culpa também é nossa.
Isso não é nada novo. É da natureza da democracia que ela só funcione bem quando o poder é fiscalizado. Vamos lá na história do pensamento político para ver isso. Montesquieu, em "O Espírito das Leis", propunha a separação de poderes e um sistema de freios e contrapesos para evitar os abusos do poder absoluto:
- Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Uma constituição pode ser de tal modo, que ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e não fazer as que a lei permite. (...) Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Se num Estado livre todo homem que supõe ter uma alma livre deve governar a si próprio, é necessário que o povo, no seu conjunto, possua o poder legislativo.
Os princípios propostos por Montesquieu no século 18 são a pedra fundamental de todas as constituições modernas. O eleitor, o cidadão comum, é em seu modelo representado basicamente pelos parlamentares eleitos pelo voto popular - ao invés dos legisladores apontados pelo rei. O modelo é bonito, mas tem falhas. As brechas são tantas que permitem a executivos e legislativos eleitos pelo voto popular incorrerem em distorções semelhantes às que o filósofo francês via na monarquia.
Poucos analistas de política levam em conta o autor que eu vou citar adiante, mas vale a pena ver a crítica que Mikhail Bakunin fazia aos limites desse princípio, no século 19:
- É verdade que, em dia de eleição, mesmo a burguesia mais orgulhosa, se tiver ambição política, deve curvar-se diante de sua Majestade, a Soberania Popular. Mas, terminada a eleição, o povo volta ao trabalho, e a burguesia, a seus lucrativos negócios e às intrigas políticas. Não se encontram e não se reconhecem mais. Como se pode esperar que o povo, oprimido pelo trabalho e ignorante da maioria dos problemas, supervisione as ações de seus representantes? Na realidade, o controle exercido pelos eleitores aos seus representantes eleitos é pura ficção. Se, no sistema representativo, o controle popular é uma garantia da liberdade do povo, é evidente que tal liberdade não é mais do que ficção.
Os anarquistas é que foram os grandes introdutores da dúvida sobre o papel fiscalizatório do eleitor na democracia representativa. Mesmo que eles fossem ruins de prescrição (abolir o estado é praticamente inviável), eram ótimos de diagnóstico.
Hoje, porém, temos facilidades que não se tinha na época de Montesquieu, nem na de Bakunin, e nem quando nossa Constituição atual foi adotada.
No século 19, para fiscalizar o exercício do poder, era preciso ter tempo livre, ir lá e contar com os bons bofes de quem fosse te receber. Hoje, há um volume cada vez maior de informação disponível sobre o exercício do poder (ainda que não plenamente satisfatório) e as ferramentas da internet, que permitem a todos fiscalizar o poder no horário de serviço.
Em 1988, durante a Assembléia Constituinte, o meu mestre Serjão Gomes, da Oboré, trabalhou ao lado do Diap num projeto para avaliar como os que escreviam a Constituição votavam em questões de interesse dos sindicatos. Precisou enviar repórteres próprios a Brasília, para acompanhar todos os trabalhos e bolar uma espécie de índice de como os parlamentares votavam nas questões que tangem aos direitos trabalhistas. Tudo na base do papel e caneta, no tempo da máquina de escrever. Uma operação que saía caro, mas o produto final -- o livro "Quem foi quem na Constituinte" -- ajudou a influir na eleição de 1989 e, indiretamente, na definição dos candidatos que se tornaram os favoritos em todas as eleições presidenciais desde então.
Hoje, com a internet, podemos fiscalizar parte do trabalho dos políticos quase em tempo real. O melhor exemplo disso é o projeto Excelências, da Transparência Brasil - o trabalho de que mais me orgulho de ter bolado e executado na vida até agora. Lá estão reunidas todas as informações disponíveis atualmente sobre como os políticos exercem o poder em nosso nome. Isso facilita bastante. Pode melhorar, conforme mais informação vai se tornando disponível. Ainda precisamos pressionar para isso, especialmente por uma lei que garanta o acesso de todos a informações públicas. Mas é um caminho possível que vai se abrindo.
É por isso que eu sou pessimista no diagnóstico do cenário mas otimista na avaliação das perspectivas. Não em relação ao que os representantes eleitos, por maioria, vão fazer - eu não tenho ilusões quanto a eles terem do nada um clarão de razoabilidade e um dia só que fosse fazerem tudo do jeito como deve ser feito.
Meu otimismo é em relação às possibilidades de o eleitor fiscalizar e cobrar de seus representantes que façam mais coisas do jeito como devem ser feitas. Dá um trabalho danado, não funciona como uma bala de prata, não vai resolver as coisas da noite para o dia. Mas vale a pena.
3 comentários:
Foi muito bom ler o seu texto. Infelizmente, a pergunta que dá título ao escrito parte de pelo menos uma premissa falsa: a existência de cidadania. Portanto, todas as reflexões decorrentes da leitura do seu texto são construtivas, assim como meramente "programáticas". Sem cidadania, o principal (no contexto), o que os cidadãos podem fazer (o acessório) parece, apenas, conversa de natureza utópica. Sugiro que a mesma mente criativa e bem aparelhada trabalhe, para meu deleite, a seguinte pergunta: o que se pode fazer para promover a cidadania? Pois é, no Brasil, a grande maioria que colher sem jamais ter plantado... Obrigado. Continue firme e forte no seu trabalho.
Eu acredito que cidadania se constrói pela ação, na prática. Admiro bastante um trabalho feito no Piauí pelo advogado José de Arimatéia Dantas. Todo ano, ele reúne gente muitas vezes quase sem instrução formal e ensina como fiscalizar contas públicas. Dada a aulinha, eles partem para solicitar os documentos e checá-los na prática. Diz ali que o dinheiro foi liberado para construir X casas populares? Eles vão lá contar as casas; se está faltando alguma, o que foi feito com o dinheiro? Acredito que a difusão de ferramentas para estimular atitudes práticas de fiscalização do poder promove a cidadania muito mais do que qualquer petição de princípios. E você? (Aliás: e os outros leitores?)
(Sobre a observação de muita gente querer colher sem ter plantado: aguarde meu próximo texto. Tenho pensado bastante sobre isso nos últimos dias, em relação a várias coisas. Aguardo seu comentário lá também.)
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