Dez dias antes do primeiro show da Madonna, diversos desocupados já acamparam na frente do estádio do Morumbi, numa inequívoca oportunidade de ocasião para qualquer bandido que se preze.
Eles são um pouco mais velhos que os fãs do Rebelde, mas têm mais ou menos a mesma mentalidade. Se duvidar, há até tios dos fãs do Rebelde ali no meio. Em setembro, eles se acotovelaram na internet, altas horas da madrugada, pra comprar um ingresso caríssimo num site de metodologia obscura - e que, por vezes, cobrava dobrado. Agora, já com o ingresso no bolso, largam tudo (sei lá se tiram férias do trabalho ou se simplesmente são desocupados) pra se dedicar por dez dias à nobre atividade de esperar a Madonna tocar, expostos ao sol e à chuva.
Eles dirão que é por amor à música. Mas, pra mim, isso soa mais a falta do que fazer, temperada por um vezo antropológico nativo.
O pessoal em São Paulo gosta de fazer fila. O trânsito é uma boa prova disso. A mentalidade do engarrafamento, porém, se estende a todas as atividades humanas - em especial às culturais e gastronômicas.
Ainda outro dia fui ao cinema assistir "Rebobine, por favor". Os ingressos eram gratuitos, então havia uma fila para obtê-los. Até aí, normal. Então, passou o sujeito da bilheteria entregando os bilhetes. Ingresso garantido, coloquei-o no bolso e fui sentar à sombra, beber uma água, algo assim. A fila continuou lá - desta vez, esperando a porta abrir. Deixei a fila passar e só entrei quando já estava aberto. Peguei um ótimo lugar. Com a vantagem de que ainda aproveitei a sombra e bebi água.
Gosto muito da padaria Bella Paulista, na Haddock Lobo. Mas há vários meses me recuso a comer lá. A comida é deliciosa, os pães estimulam todos os sentidos, mas a fila é insuportável. Não acho que valha a pena ficar 20 minutos na fila por um bom pedaço de pizza e uma caldereta de chope gelado. Há outros lugares, até ali perto, que servem o mesmo, com qualidade e respeito ao valor do meu tempo.
Em 2005, eu fui algumas vezes a um bar de jazz muito bom que abriu no Bexiga. Como ele estava abrindo, ia pouca gente. Um dia, vi lá dois músicos tocando apenas o cancioneiro do Robert Johnson, com um violão monstruosamente bem-tocado e tudo mais. Ao sair, cumprimentei o dono. Travou-se este diálogo:
-- Genial, este bar. É bom aproveitar agora, porque daqui a um ano certamente isso aqui vai estar lotado.
-- Um ano é tempo demais, quero que estoure logo!
Como não tinha fila na porta - embora fosse isso o que mais me atraía lá, além da qualidade da música -, ele fechou em pouquíssimos meses. Uma pena. Hoje, no mesmo lugar, funciona uma casa de pagode. Mais uma vez a lógica do engarrafamento venceu a lógica da qualidade.
No fim, tudo isso são sintomas de como cada um usa seu tempo. O meu, pessoalmente, eu trato feito diamante.
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
A lógica do engarrafamento e a falta que faz o cabo de enxada
Postado por Marcelo às 14:46
Marcadores: sampedestres, ser urbano, sociedade do espetáculo, viagens na irrealidade cotidiana
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Um comentário:
tem o exemplo que serve para qualquer destino no Brasil: o avião toca no solo e o povo já levanta e toca ficar em fila até a porta abrir. Eu não tenho paciência, prefiro esperar a fila andar ou acabar para poder levantar da minha poltrona.
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