sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Conteúdo participativo... e manipulável

Li este anúncio num site internacional de freelancers. Ele pede "redatores de artigos da Wikipedia". paga até US$ 500 para quem escrever artigos sobre seus clientes. Que clientes são? Não diz. Que tipo de conteúdo? Possivelmente laudatório.

Tenho impressões contraditórias sobre a onda de conteúdo participativo aberto a edição livre, como o que ocorre na Wikipedia. Ao mesmo tempo em que acho isso ótimo (eu mesmo edito alguns sobre assuntos de que entendo, quando sobra tempo), também reconheço que abre flancos a dois problemas fundamentais:

1) Redução ao mínimo múltiplo do senso comum - Como qualquer um pode editar um verbete na Wikipedia, a alteração feita por um especialista vale tanto quanto a feita por um toupeira. Quando se acessa um verbete na Wikipedia, nunca se sabe qual dos dois o editou imediatamente antes de você abri-lo. O monitoramento do sistema é bom o suficiente para eliminar automaticamente grandes absurdos (como este aqui, em que alguém trocou todo o verbete "Brasil" por um manifesto anti-wikipedia, o que foi prontamente desfeito). Mas não garante a correção de besteiras que podem passar por verdades. Isso só ocorre quando alguém que manja do assunto detecta e se dispõe a corrigir. O que abre espaço para o próximo ponto.

2) Manipulação competente por parte dos interessados - Ponha-se no lugar de uma grande empresa ou instituição que está envolvida em atividades com grandes conseqüências políticas. Você não mexeria no seu verbete? Nos EUA, um estudante de pós-graduação criou o WikiScanner, que monitora alterações na Wikipedia feitas por IPs de grandes empresas ou instituições conhecidas.

Uma das monitoradas é a Diebold, que fabrica urnas eletrônicas nos EUA (e comprou a Procomp, que faz ou fazia as urnas eletrônicas brasileiras). Veja aqui os verbetes que foram alterados por computadores com seu IP. Muita coisa é besteira mesmo. Mas vejam quantas vezes foram alterados os verbetes sobre candidatos republicanos às eleições de 2008. E especialmente quantas vezes foram feitas lá dentro alterações ao verbete da própria Diebold. Tudo bem: a empresa é quem mais sabe de si própria. Mas e quando uma alteração feita de dentro da empresa simplesmente elimina todas as referências a críticas feitas a ela, como fez a Diebold?

Quando li "1984", do George Orwell, eu achava graça na idéia de que todas as edições do jornal oficial fossem reimpressas a cada mudança da conjuntura política, para adequar o relato do passado às conveniências do presente. Era um absurdo, naqueles tempos inocentes do século passado. Ele descrevia assim o processo:

    "O que acontecia no labirinto invisível ao qual levavam os tubos pneumáticos, ele não sabia em detalhes, mas sabia em termos gerais. Assim que todas as correções que se fizessem necessárias em qualquer edição familiar do 'The Times' tivessem sido coligidas e reunidas, aquele número seria reimpresso, a cópia original destruída e a cópia corrigida colocada nos arquivos em seu lugar. Este processo de alteração contínua era aplicado não só aos jornais, mas a livros, periódicos, panfletos, pôsteres, folhetos, filmes, trilhas sonoras, desenhos animados, fotografias - a todo tipo de literatura ou documentação que pudesse concebivelmente ter algum significado político ou ideológico. Dia a dia, e quase minuto a minuto, o passado era atualizado. Desta forma, toda previsão feita pelo Partido poderia ser demonstrada como correta por todas as evidências documentais, e nenhum registro de notícia ou nenhuma expressão de opinião que conflitasse com as necessidades do momento seria permitido. Toda história era um palimpsesto, apagado e reescrito exatamente com a freqüência que fosse necessária. Em nenhum caso seria possível, quando isso fosse feito, provar que qualquer falsificação tivesse ocorrido."

Há, obviamente, diferenças em relação à distopia imaginada por Orwell. Em primeiro lugar, porque as alterações não dependem de um governo central de mão pesada. Qualquer um pode mudar. Em segundo lugar, a Wikipedia deixa rastros. Só por isso é possível ver que veio da Diebold a alteração que eliminou as críticas. É bem melhor que 1984, mas ainda estamos expostos à manipulação dos verbetes.

Por tudo isso, é sempre saudável checar fora da Wikipedia - e de qualquer outro lugar onde qualquer um possa fazer edições - as informações que você consultar lá.

E vocês, o que pensam a respeito?

2 comentários:

Anônimo disse...

Wikipédia é tão perigosa quanto... BLOGS! =D

Achei a comparação com 1984 beeem forçada. Wikipédia deixa rastros, e basta que os interessados olhem nesses rastros pra saber se houve alterações de má fé ou não.

Se ninguém se der ao trabalho de olhar lá... bem, é como pedir aos políticos que repassem suas contas de campanha, mas ninguém conferi-las.

Tomando um pouco de cuidado, a Wikipédia é uma ferramenta MUITO boa.

Marcelo disse...

Concordo plenamente com todas as observações. Inclusive a ressalva está logo abaixo do trecho de "1984", se você reler o post com cuidado. Aliás: gosto tanto da Wikipedia que, quando me sobra algum tempo eu dou uma mexida nos verbetes sobre algum assunto de que eventualmente eu entenda. Mas vale a pena ficar de olho, sempre.