terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Escravos importados e software livre

No ritmo de compras de natal, vale fazer uma observação.

Nas comemorações do Dia do Imigrante, o Ministério do Trabalho fechou acordo com as lojas Renner e Marisa para que elas deixem de vender roupas cujos fornecedores empreguem trabalho escravo. Anteriormente, já haviam sido assinados compromissos semelhantes com a C&A e a Riachuelo.

Isso não acontece apenas porque é bonito marcar posição nesse tipo de coisa - embora muita gente assine esses compromissos meramente por retórica.

Em São Paulo, como em Buenos Aires e noutras partes, há uma quantidade imensa de oficinas de costura que empregam imigrantes bolivianos ilegais. A maior parte deles não chega a ganhar sequer um salário mínimo por mês, e mesmo isso vai em dívidas com comida e moradia com o boliviano que os entrega. Cada vestido que fazem é vendido por R$ 2 a um coreano, e a partir daí segue uma escala que chega aos guarda-roupas mais populares do Brasil. Houve uma CPI na Câmara Municipal de São Paulo, relatada pela vereadora Soninha, que constatou as péssimas condições de trabalho dos bolivianos e encontrou no chão dessas "sweatshops" etiquetas exatamente das lojas que mais vendem. (Baixe aqui a revista Observatório Social editada em 2005 sobre o assunto.)

Neste domingo, a Folha publicou uma reportagem fotográfica em que Antônio Gaudério foi para a Bolívia, fez um curso tabajara de corte e costura e arrumou um emprego numa malharia em São Paulo. Lá, os outros trabalhadores comiam com as mãos nacos de carne de porco mergulhados numa papa de batata com milho. O próprio patrão trabalhava das sete à meia-noite na máquina de costura, pra passar dois dias sem finalizar um vestido sequer de R$ 2. O relato de Gaudério virou até podcast.

(Foi a de longe a reportagem mais legível publicada pelo jornal, num domingo com muitas páginas de Datafolha, CPMF, bispo em greve de fome, novas análises de estatísticas já divulgadas e futilezas como os novos biquínis do verão. Saiu no caderno Dinheiro 2. Na internet, está disponível só para assinantes da Folha. Pena.)

O consumidor não tem como saber que peças da loja popular com crediário a perder de vista foram confeccionadas em condições degradantes. Apertado de grana, também é difícil manter o bolso e a consciência em paz entre si ao saber que compra num lugar que um dia usou esse tipo de trabalho. O boliviano que se submete a isso é um sem-tudo: sem salário, sem documentos, sem legalização no país, muitas vezes sem família e sem muitas condições de ir atrás de coisas básicas como atendimento médico, por medo de ser pego estando ilegalmente no país.

Perplexo? Recorra ao "Ilícito", de Moisés Naím. Ele mostra como a explosão de tecnologia, comunicação e transportes facilitou a vida de todo mundo, mas especialmente a dos que operam no que ele chama de "buracos negros" - gerando oferta do que tem uma demanda ilegal, ou do que só pode ser fornecido barato utilizando condições degradantes. Ele não traz conforto. Mas recomenda canalizar a perplexidade na busca de idéias.

    O comércio ilícito é essencialmente determinado pela diferença de preços. A madeira que é muito mais cara em Los Angeles do que na Indonésia; as folhas de coca que podem ser processadas e vendidas em Miami por um preço centenas de vezes maior do que nas ruas bolivianas; os trabalhadores camaroneses que recebem em Londres o que jamais sonhariam ganhar em seu próprio país. Quanto mais brilhante o ponto de luz, mais altos são os preços que os produtores ilícitos podem atingir. Quanto mais escuro o buraco negro, mais ansiosa sua população estará por vender seus produtos, suas mentes, seu trabalho e, até mesmo, seus corpos aos traficantes. Juntas, essas duas tendências criam diferenças de preço cada vez maiores - e, portanto, incentivos cada vez mais irresistíveis para que os buracos negros conectem-se aos pontos de luz.

    (...) Por ora, a tendência é a expansão. Mais tráfico, mais buracos negros, mais conflitos e confusões, enquanto as fronteiras permanecem porosas, a despeito das tentativas do governo para fechá-las. Mas essa tendência é irrevogável? Estamos fadados a mergulhar, no futuro próximo, em um mundo de fortalezas sitiadas, guetos e terras de ninguém? Caso se acredite simples e exclusivamente no poder da motivação pelo lucro, a resposta é sim. Caso se acredite que idéias podem mudar o mundo, então a resposta é não. A história, porém, nos ensinou a acreditar nas duas coisas. Nem o lucro triunfará um dia sobre as idéias, nem as idéias erradicarão de vez o incentivo do lucro.

Parafraseando o maior gênio com quem já trabalhei, não se combate o ilícito meramente gritando "pega ladrão". Isso funcionaria se o sentimento de vergonha dos envolvidos fosse poderoso a ponto de paralisá-los e fazê-los mudar de vida. Caminhar no centro de uma capital mostra que isso não rola - o negócio é que o pessoal compra porque o produto é barato e o salário é curto. Entretanto, é o simplista "pega ladrão" o foco de todas as campanhas que já vi sobre pirataria de CDs e DVDs, por exemplo. Dizer "papai do céu castiga" seria tão eficiente quanto. Mas histórias assim só existem nas madrugadas da TV Record.

O Everton, um dos mais assíduos leitores deste blog, lembraria que idéias como o software livre floresceram a partir da constatação de que a pirataria de software ocorre porque de um lado há demanda pelo serviço do programa e por outro a oferta de grife custa caro e não permite a personalização. Na música, o Radiohead tentou bolar um modelo econômico com as vendas de seu último CD ao preço que o freguês quiser. Sei lá se funcionou direito, mas tem o mérito da tentativa.

Mas e no vestuário, existe um "linux"? Ou será que o software livre da roupa é a velha máquina de costura da vovó?

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