Na próxima semana, o curso de Letras da USP terá um ciclo de palestras que inclui uma mesa sobre "Manifestações de preconceito e intolerância lingüísticos". A professora Marli Quadros Leite vai falar sobre como a imprensa usa a linguagem de maneira preconceituosa. O ponto mais popular da questão, informa o jovem jornalista que enviou o material para a lista da Abraji, é o uso do termo "menor" para descrever quem tem menos de 18 anos e porventura comete crimes. Pode? Não pode? Tanto faz?
Conheço bem o debate. Muitas das críticas que vejo à imprensa são nesse sentido. "Ah, chamou de menor!", "Ah, sem-terra ocupa e não invade!" No tempo em que eu trabalhava em redação, também era comum recebermos telefonemas reclamando do uso de certos termos. As intenções do pessoal muitas vezes são boas. Ótimas. Geralmente trata-se de não estigmatizar grupos ou ações. Mas será que adianta mexer no simbólico se o concreto é o mesmo?
É claro que é preciso se preocupar com a exatidão do vocabulário. Não sou "pessoa portadora de sofrimento psíquico", como diria essa gente, de imaginar o contrário. De fato há palavras que, mal escolhidas, distorcem a informação. Mas muitas vezes o que eu observo é que se policia a forma do significante por não se poder alterar a concretude do significado, pra usar expressões do domínio desse pessoal aí. Isso dá a impressão de que se está "fazendo alguma coisa" a respeito. Ou serve pra mascarar o significado mesmo. Troca-se placas, muda-se o logo, contrata-se agências de publicidade e consultorias de imagem, dá-se discursos... faz um bem danado em ano eleitoral.
Em várias vezes, trata-se de grupos rivais carimbando com palavras mais ou menos simpáticas situações concretas. Veja os grupos "pró-vida" e "pró-escolha", rótulos politicamente corretos adotados pelos grupos que contra ou a favor do aborto. Vida e escolha são valores universais. Ao adotar semanticamente tais palavras em defesa de um lado numa causa polêmica, porém, os grupos buscam fugir do cerne do assunto e carimbar os opositores como pró-morte ou contrários ao livre arbítrio. É preciso sempre acompanhar essas questões com o devido olhar crítico, sem escapar da questão e, de preferência, sem comprar o peixe dos lados em conflito. Levando em conta o cerne da questão, não a retórica dos lados em esgrima.
O resultado muitas vezes lembra aquela brincadeira do humorista Zé Simão sobre o dicionário de tucanês. Às vezes isso rende tributo ao marketing, em piadas práticas tipo mudar o nome da Febem pra sigla Casa sem que haja notícia de mudanças de mesmo calibre nas práticas internas. Eles continuam em más condições, mas agora o nome da instituição é mais simpático. Mais uma ação do governo estadual. Ou aquela desculpa famosa: não se tratava de caixa-dois, e sim de recursos não-contabilizados.
Tente explicar pra dona Maria o que é um 'adolescente em situação de conflito com a lei sob medida sócio-educativa de privação da liberdade sem lazer externo". Lembro da expressão porque minha amiga assistente social que a usou precisou respirar no meio. "Tucanaram o pivete preso!", provoquei com minha melhor gargalhada de Vincent Price (baixe aqui a original). Ela quase me deixou tomando café sozinho, não sei se por causa do “tucanaram”, do “pivete” ou do “preso”. Não sei qual das palavras ela achou mais feia. A situação do adolescente, porém, ao que eu saiba não mudou por causa da longa expressão.
No fim, o resultado é mais ou menos o mesmo que se agarrar ao debate sobre a idade de uma moça que foi presa entre homens e estuprada durante um mês. Se ela fosse maior de idade, isso atenuaria a situação pela qual ela passou? Claro que não. Mas a ênfase no debate do acessório é uma forma de evadir-se do debate sobre as situações concretas. Faz barulho e dá ibope.
Há alguns anos, o governo federal tentou emplacar a cartilha "Politicamente Correto & Direitos Humanos", que fazia a lista do pode-não-pode. Os dois primeiros verbetes:
- A coisa ficou preta – A frase é utilizada para expressar o aumento das dificuldades de determinada situação, traindo forte conotação racista contra os negros.
Africano – Termo relativo à África, aos seus naturais e habitantes. Sua utilização genérica muitas vezes serve para negar a diversidade de países e povos daquele continente ou para discriminá-los, em geral, inferiorizando-os.
A cartilha surgiu pouco antes do escândalo do mensalão, em que logo no começo uma das principais defesas do governo foi o fato de que todos os partidos políticos fazem caixa-dois. Nessa fase triunfal, a cartilha trazia este verbete:
- Farinha do mesmo saco – A expressão, junto com outras semelhantes – “Todo político é ladrão”, “Os jornalistas são mentirosos”, “Os muçulmanos são terroristas” – ilustra a falsidade e leviandade das generalizações apressadas, base de quase todos os preconceitos. O fato de haver políticos corruptos, jornalistas imprecisos e muçulmanos extremistas não significa que a totalidade de cada um desses segmentos mereça aquelas respectivas acusações. Por outro lado, especialmente na imprensa diária, a utilização de características pessoais do personagem da notícia muitas vezes trai o preconceito do repórter. É comum lembrar os traços étnicos de um ladrão se ele é negro, mas não se for branco. Pouquíssimos jornalistas se referiram ao fato de o presidente George Bush ser metodista quando noticiaram que ele resolveu atacar o Iraque. Mas muitos escreveram e continuam a escrever que os militantes que participam da resistência iraquiana são muçulmanos. É usual adjetivar os partidos palestinos, sem exceção, de terroristas, mas muito raro chamar de terrorista o governo de Israel quando este lança mísseis sobre civis palestinos. Não se trata de evitar ou omitir informações, mas de saber utilizá-las de maneira adequada e precisa, para prevenir o preconceito e a discriminação.
Nem o próprio presidente Lula escapava de utilizar alguns dos termos vetados por seu governo. A cartilha acabou suprimida (mas você pode baixá-la aqui, graças a um desses geniais espíritos de porco que andam pela internet).
Não é só o pessoal "do social" que gosta disso. Lembre que a CPMF é "contribuição" e "provisória". E veja esta notícia de hoje, dando conta de que o Conselho Monetário Nacional resolveu dar uma dura nos bancos pra eles padronizarem os nomes das tarifas bancárias. Muitas vezes a gente paga "tarifa fácil", "taxa flex" e sabe-se lá mais o quê, sem saber direito o que é. Cada banco bota seu nomezinho simpático nas taxas. Alvíssaras: uma dentro, a favor do nosso bolso.
Sempre que eu vejo essas coisas, lembro de George Orwell. No ensaio "Politics and the English Language", de 1946, Orwell desenvolveu o que pensava sobre o assunto pra depois fazer a caricatura com a novilíngua do romance 1984. Fiquem com um trecho, até porque ele é muito mais arguto do que eu poderia pensar em ser:
- Em nosso tempo, a redação e oratória políticas são em grande parte a defesa do indefensável. Coisas como a continuidade do domínio britânico na Índia, os expurgos e deportações russos, o despejo de bombas atômicas no Japão, podem de fato ser defendidos, mas somente com argumentos que são brutais demais para a maior parte das pessoas encararem, e que não fecham com os objetivos declarados dos partidos políticos. Assim, a linguagem política precisa consistir em grande parte de eufemismos, desculpas e pura vagueza nebulosa. Vilarejos indefesos são bombardeados pelo ar, os habitantes levados a ir para o interior, o gado é metralhado, as cabanas pegam fogo com balas incendiárias: a isso se chama pacificação. Milhões de camponeses têm suas fazendas roubadas e são levados a arrastar-se pela estrada levando apenas o que podem carregar: a isso se chama transferência de população ou retificação de fronteiras. Pessoas são presas por anos sem julgamento, ou levam tiros na nuca ou são largados para morrer de escorbuto nos campos do Ártico: a isso se chama eliminação de elementos não-confiáveis. Tal fraseologia é necessária quando se quer dar nome às coisas sem evocar imagens mentais delas. (...)
O estilo inflado é em si um tipo de eufemismo. Uma massa de latim cai sobre os fatos como suave neve, borrando seus contornos e encobrindo todos os detalhes. O grande inimigo da linguagem clara é a insinceridade. Quando há um intervalo entre os objetivos real e declarado de alguém, isso se transforma quase instintivamente em longas palavras e jargões exaustos, como um siba jorrando tinta. Em nosso tempo, não existe algo como "manter-se fora da política". Todas as questões são questões políticas, e a própria política é uma massa de mentiras, evasões, estupidez, ódio e esquizofrenia. Quando a atmosfera em geral é ruim, a linguagem deve sofrer.
Quando o debate sobre uma questão séria se prende ao acessório por motivos políticos, abra o olho.
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