quarta-feira, 5 de março de 2008

Harmonia e independência; Orwell e o anzol

A Presidência da República presta um serviço inestimável ao cidadão brasileiro: as transcrições dos discursos e entrevistas do presidente na íntegra.

Vale a pena comparar o discurso que ele deu defendendo que o Judiciário não deve se meter no Executivo, dia 28 (baixe aqui), com o que ele deu ontem na abertura de um evento do Judiciário, ensaboando pra tentar explicar (baixe aqui). No mesmo dia em que seu partido decidiu processar o ministro Marco Aurélio de Mello, aliás.

Dia 28:

    A oposição fica torcendo para a gente errar. Agora mesmo, entraram na Justiça porque o Tarso está fazendo um programa no Pronasci, que é uma complementação salarial, de até 1.400 reais, para que os nossos policiais possam se formar. É uma bolsa para formar os policiais. Eles entraram dizendo que a gente não pode fazer porque é eleitoreiro. (...)

    Seria tão bom se o Poder Judiciário metesse o nariz apenas nas coisas deles, o Legislativo apenas nas coisas deles e o Executivo apenas nas coisas deles. Nós iríamos criar a harmonia que está prevista na Constituição, para que a democracia brasileira seja efetivamente garantida. Jackson Barreto, você tem a obrigação de fazer um discurso na tribuna da Câmara, perguntando a quem falou essa sandice, se ele quer ser Ministro da Suprema Corte ou se quer ser político. Se ele quiser ser político, renuncie lá e se candidate a um cargo para falar as bobagens que quiser, na hora em que quiser, mas não fique se metendo na política do Poder Executivo. (...)

    O governo não se mete no Poder Legislativo, não tem um palpite meu no Poder Legislativo. E o governo não se mete no Poder Judiciário. Se cada um ficar no seu galho, o Brasil tem chance de ir em frente. Se cada um quiser dar palpite na vida do outro, a gente pode conturbar a tranqüilidade que a sociedade brasileira espera de nós e crê que nós vamos implantá-la.

Ontem:

    Neste momento, em que está em pauta o funcionamento do Judiciário nos regimes democráticos, é indispensável lembrar que sua independência não é privilégio ou mero favor concedido unilateralmente: trata-se de garantia fundamental contra o arbítrio de outros Poderes. (...)

    Por outro lado, é preciso ter claro que a separação de poderes não é estanque, nem configura um fim em si mesmo. É uma garantia e por isso se justifica como meio de controle do poder e de combate ao arbítrio. Nesse processo, é natural e salutar que haja diálogo e controvérsia entre as diversas esferas de controle do poder. Onde não há dissenso, não há democracia. Só governos democráticos permitem a divergência e com ela convivem; só governos democráticos constroem-se a partir dela. (...)

    É preciso reforçar, mais uma vez, que a harmonia entre os Poderes se justifica na medida em que favorece e promove o bem-estar daquele que é, sempre foi e sempre será o seu titular: que é o povo.

Num ele fala de improviso. No outro, cautelosamente, usa inclusive expressões como "atividade jurisdicional célere, legítima e efetiva", "exercício judicante livre e independente" e "garantia da inércia judicial" (este eu confesso que não entendi).

O primeiro é direto. O segundo, aveludado.

A questão da promoção do bem-estar remete ao primeiro discurso, em que ele reclamava de não poder inaugurar novos programas sociais, que promovem o bem-estar de faixas da população, em ano eleitoral, para evitar suspeitas de favorecimento eleitoreiro. Não há dúvida de que os programas sociais promovem o bem-estar, pois botam uns caraminguás no bolso de quem não tem.

O problema é como balancear isso com a questão eleitoral. A oposição questionou na Justiça. O ministro Marco Aurélio disse que cabia questionar. Falta aguardar que a Justiça se manifeste. Isso de forma alguma é uma intromissão, quer-me parecer.

Mas isso não é o mais importante. O que me preocupa é o discurso pomposo. Não por motivos estéticos, mas porque esta observação feita por George Orwell em 1946 é cirúrgica:

    A redação e oratória políticas são em grande parte a defesa do indefensável. (...) A linguagem política precisa consistir em grande parte de eufemismos, desculpas e pura vagueza nebulosa. (...) Tal fraseologia é necessária quando se quer dar nome às coisas sem evocar imagens mentais delas. (...) Uma massa de latim cai sobre os fatos como suave neve, borrando seus contornos e encobrindo todos os detalhes. O grande inimigo da linguagem clara é a insinceridade. Quando há um intervalo entre os objetivos real e declarado de alguém, isso se transforma quase instintivamente em longas palavras e jargões exaustos, como um siba jorrando tinta.

Faz todo sentido, se você acompanha o linguajar da política - e especialmente os discursos redigidos com mais vagar. As expressões técnicas costumam estar lá para folhar a ouro o anzol. No caso, parece tratar-se do trecho que diz: "a separação de poderes não é estanque".

E está certo o presidente: com 76% das leis aprovadas tendo origem no Executivo, a farta liberação de emendas em votações de interesse do governo e os escândalos mais conhecidos do Brasil, não dá pra dizer mesmo que a separação é estanque. Devia ser mais, na verdade.

    EDITADO: Inércia jurídica é o princípio pelo qual a Justiça só deve agir quando provocada. Por meio do uso da expressão, portanto, o discurso usou a terminologia jurídica para alfinetar a declaração do ministro. Assim, dá pra dizer que se trata do mesmo discurso de antes, escrito de maneira diferente e com elevados protestos de estima e consideração.

Um comentário:

Anônimo disse...

Vou com você. No primeiro discurso, temos o presidente espontâneo, que nos brinda diariamente com suas "pérolas" gramaticais ou argumentativas. Já o segundo, é mais grave. Lulla não o escreveu; não há espontaneidade - ao contrário, há objetivos calculados. Quando você reclama do primeiro, desmerecem seu juízo por "preconceituoso"; e quando reclama, se reclama, do segundo??? Eu cá acho que o patamar para início de qualquer conversa sobre o governo Lulla da Silva é "formação de quadrilha". Daí pra frente. E não tenho nenhum prazer em dizer isso, ao contrário, tenho medo.