quarta-feira, 5 de março de 2008

Igreja, estado e ciência

O STF começou a apreciar hoje uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que pedia a proibição da pesquisa com células-tronco embrionárias.

O ministro Carlos Ayres Britto, relator do caso, ouviu cientistas a respeito e preparou um voto de 72 páginas (baixe aqui) dizendo que tal tipo de pesquisa é, sim, constitucional.

Vale a pena ler o trecho final:

    Tem-se, neste lanço, a clara compreensão de que o patamar do conhecimento científico já corresponde ao mais elevado estádio do desenvolvimento mental do ser humano. A deliberada busca da supremacia em si da argumentação e dos processos lógicos (“Não me impressiona o argumento de autoridade, mas, isto sim, a autoridade do argumento”, ajuizou Descartes), porquanto superador de todo obscurantismo, toda superstição, todo preconceito, todo sectarismo. O que favorece o alcance de superiores padrões de autonomia científico-tecnológica do nosso País, numa quadra histórica em que o novo eldorado já é unanimemente etiquetado como “era do conhecimento”.

    “Era do conhecimento”, ajunte-se, em benefício da saúde humana e contra eventuais tramas do acaso e até dos golpes da própria natureza, num contexto de solidária, compassiva ou fraternal legalidade que, longe de traduzir desprezo ou desrespeito aos congelados embriões in vitro, significa apreço e reverência a criaturas humanas que sofrem e se desesperam nas ânsias de um infortúnio que muitas vezes lhes parece maior que a ciência dos homens e a própria vontade de Deus. Donde a lancinante pergunta que fez uma garotinha brasileira de três anos, paraplégica, segundo relato da geneticista Mayana Zatz: - por que não abrem um buraco em minhas costas e põem dentro dele uma pilha, uma bateria, para que eu possa andar como as minhas bonecas?

    Pergunta cuja carga de pungente perplexidade nos impele à formulação de outras inquirições já situadas nos altiplanos de uma reflexão que nos cabe fazer com toda maturidade: deixar de atalhada ou mais rapidamente contribuir para devolver pessoas assim à plenitude da vida não soaria aos médicos, geneticistas e embriologistas como desumana omissão de socorro? Um triste concluir que no coração do Direito brasileiro já se instalou de vez “o monstro da indiferença” (Otto Lara Resende)? Um atestado ou mesmo confissão de que o nosso Ordenamento Jurídico deixa de se colocar do lado dos que sofrem para se postar do lado do sofrimento? Ou, por outra, devolver à plenitude da vida pessoas que tanto sonham com pilhas nas costas não seria abrir para elas a fascinante experiência de um novo parto? Um heterodoxo parto pelos heterodoxos caminhos de uma célula-tronco embrionária que a Lei de Biossegurança pôs à disposição da Ciência? Disponibilizando para ela, Ciência, o que talvez seja o produto de sua mais requintada criação para fins humanitários e num contexto familiar de legítimo nãoaproveitamento de embriões in vitro? Situação em que se possibilita ao próprio embrião cumprir sua destinação de servir à espécie humana? Senão pela forja de uma vida estalando de nova (porque não mais possível), mas pela alternativa estrada do conferir sentido a milhões de vidas preexistentes? Pugnando pela subtração de todas elas às tenazes de u’a morte muitas vezes tão iminente quanto nãonatural? Morte não-natural que é, por definição, a mais radical contraposição da vida? Essa vida de aquém-túmulo que bem pode ser uma dança, uma festa, uma celebração?

    É assim ao influxo desse olhar póspositivista sobre o Direito brasileiro, olhar conciliatório do nosso Ordenamento com os imperativos de ética humanista e justiça material, que chego à fase da definitiva prolação do meu voto. Fazendo-o, acresço às três sínteses anteriores estes dois outros fundamentos constitucionais do direito à saúde e à livre expressão da atividade científica para julgar, como de fato julgo, totalmente improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade. Não sem antes pedir todas as vênias deste mundo aos que pensam diferentemente, seja por convicção jurídica, ética, ou filosófica, seja por artigo de fé. É como voto.

O julgamento, porém, foi suspenso por pedido de vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, o segundo a votar. Já era esperado. Segundo os jornais de hoje, Menezes Direito foi indicado para o STF com o apoio do Vaticano, principal opositor da pesquisa com células-tronco embrionárias.

O Noblat explica bem os motivos disso. Se Direito escrever uma vigorosa refutação ponto a ponto do voto, podemos ter aí um bom texto de que discordar. Vai ser um espetáculo intelectualmente estimulante, embora a posição religiosa sobre o assunto seja cientificamente indefensável.

OK. O magistrado julga com sua consciência, e a consciência de Direito é católica fervorosa. O voto dele não é decisivo. Mas, num Estado laico, seria preciso decidir levando em conta o bem mais concreto e a consciência de cada um. Se vai pro céu ou pro inferno por isso é um problema de fé, não de Justiça.

Não entendo nada de pesquisa embrionária. Mas seria mais sensato, quer-me parecer, que a pesquisa fosse liberada e os que têm objeções religiosas continuassem livres para recusar-se a fornecer os seus embriões rejeitados para pesquisa. Não é por ser permitido que passa a ser obrigatório.

    EDITADO: O Hélio Schwartzman manda bem sobre isso na Pensata.

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