domingo, 23 de março de 2008

O grande filão

Os advogados dos Beatles estão processando uma gravadora de Miami, a Fuego Entertainment, porque ela anunciou o lançamento da gravação inédita de um show da banda em 1962, na Alemanha, quando Ringo Starr estava estreando na bateria.

Isso é mais um episódio do novo filão da indústria fonográfica. Trata-se de vender ao fã mais do mesmo. Só que de uma maneira muito honrosa: acrescentando camadas ao que ele já conhecia.

Pense no meu Deep Purple de sempre, por exemplo. Quando eu tinha 14 anos, comprei o vinil do disco "Burn". Dez anos depois, comprei o CD para substituir. Três anos depois disso, saiu uma nova versão, com faixas extras, solos alternativos e algum barulhinho de estúdio - da mesma forma que eles tinham feito versões novas de todos os discos de estúdio anteriores, com muito material de gaveta. "Machine Head" chega a ter um disco inteiro com versões diferentes de músicas conhecidas, às vezes com solos novos. Resultado: comprei alguns discos duas vezes. "Burn" eu comprei três, assim como comprarei "Stormbringer" pela terceira vez neste ano.

Em 2002, uma produtora inglesa estava fazendo um documentário sobre Machine Head e descobriu que um sujeito nos Estados Unidos dispunha da única gravação em vídeo inteira e a cores do verdadeiro Deep Purple da era de prata amigos tocando Smoke on the water ao vivo, em 1973. O dono das imagens cobrou tão caro por elas que eles só puderam usar alguns minutos. O show inteiro apareceu depois em um outro DVD. Óbvia e alegremente, comprei os dois.

Pense no Miles Davis, o mestre do jazz. Os seus maiores fãs têm seus principais discos. Mas como vender-lhes de novo o que já têm? Simples: ache o que eles não têm. Assim, foram lançadas as caixas "The Complete (fill the blanks) Sessions". Enquanto o CD "Tribute to Jack Johnson", feito como trilha sonora para o filme homônimo, tem uns 52 minutos, a caixa com todas as gravações das sessões ("The Complete Jack Johnson Sessions") tem quatro discos, cada um com mais do que essa duração. Não são músicas completas, são meio que ensaios. É como se você estivesse dentro do estúdio como uma mosca, bisbilhotando o que se passa na cabeça dos músicos.

A idéia da "mosca na parede" foi a mesma usada pelos produtores dos Beatles quando lançaram uma nova versão do "Let it Be": "Let it Be... Naked". O primeiro disco mostrava as músicas conhecidas sem os arranjos orquestrais. O segundo era só de bate-papo de estúdio e se chamava exatamente "Fly on the Wall".

Mas essa briga pelos direitos sobre o show antigo dos Beatles não tem bem a ver com isso. Tem a ver com outra coisa, que ilustra outro aspecto dessa limpa de gavetas.

Em 2005, o maior lançamento de jazz do ano foi a gravação de um show "perdido" do Thelonious Monk com o John Coltrane no Carnegie Hall, gravado em 1957 e desde então esquecido. Uma delícia, aliás. Mas estava perdido nas gavetas do Carnegie Hall.

Quando estive em Londres, em julho, comprei um disco duplo com um show do Deep Purple em Montreux, em outubro de 1969 - nunca antes lançado, e que mostrava uma das primeiras apresentações da música "Speed King" ao vivo, com a letra consagrada. Antes disso, ela tinha outra letra completamente diferente. Para este purpleólogo, foi como encontrar o elo perdido.

Alguns anos atrás, era comum ver notícias de policiais que apreendiam gravações perdidas. Isso só tende a aumentar. Como nem os Beatles voltarão a gravar nenhum "Os Reis do Ié-Ié-Ié" (hehehe), nem o Miles Davis outro "Kind of Blue" e nem o Deep Purple nenhum "Machine Head", o melhor jeito de as gravadoras levantarem uma boa grana é tirar a poeira dos arquivos. E também encarar de frente o fato de que elas nunca deram muita bola para o que eles tinham.

Bem-vindos ao novo negócio do entretenimento, em que recuperar uma fita perdida dos Beatles equivale a encontrar "O Grito", de Edward Munch - com a diferença de que pode render muito, mas muito mais dinheiro. Quem diria que em algum ponto da história o rock'n'roll ultrapassaria no mercado o status da arte plástica dos maiores mestres?

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