segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Crítica da razão bombachuda


Para ter algum insight sobre os motivos do que aconteceu com o Graciliano, vale ler a gloriosa reportagem "Nação Farroupilha", publicada na National Geographic deste mês. O acampamento farroupilha - que eu chamo carinhosamente de "CTG Sapateando na Bosta" - acontece todo ano em setembro no parque Harmonia.

Se você não conhece e nem nunca ouviu falar, dá pra descrever assim: é tipo uma disneylândia dos pampas sonhados pelo Paixão Côrtes -- com a diferença de que os Mickeys, Donalds e Patetas são voluntários e até mesmo tiram férias pra acampar lá. Nos piquetes, reproduz-se milimetricamente a tradição criada no grêmio estudantil do Julinho. Milimetricamente, inclusive na estrutura de igualdade dos sexos: os "peões" ficam pra um lado contando mentira uns pros outros, geralmente pilchados, e as "prendas", geralmente embrulhadas num vestido que mais parece a cortina da sala, ficam pro outro cuidando das crias. Mas o churrasquinho de gato é de primeira.

Tal fenômeno nunca que eu me lembre foi abordado com um olhar mais crítico pela imprensa nativa - que trata o acampamento mais ou menos como a do Rio trata o carnaval, só que sem questionar os dirigentes e nem olhar as contas. Precisou que a National Geographic publicasse algo mais crítico a respeito, entre outras reportagens sobre espécies exóticas: 8 páginas depois de um texto sobre os bonobos da Reserva Nacional de Sankuru, na República Democrática do Congo, e 53 páginas antes de uma reportagem fotográfica sobre a tumultuosa temporada de acasalamento dos elefantes-marinhos na ilha Geórgia do Sul.

O trecho crucial para entender a lógica gaúcha:

    O acampamento se inicia na última semana de agosto, quando casas de madeira começam a ser construídas, e se estende até o fim de setembro. Muita gente tira férias nesse período e troca a areia da praia ou o ar da serra pelas vielas de chão batido. A cada edição, a freqüência de pessoas de um contexto mais urbano aumenta.

    Fornecedor de materiais de construção, Estêvão Scalco, o jovem patrão do Piquete 30 de Abril, recebe amigos há dez anos para confraternizar no acampamento. Ele salienta com entusiasmo o fervor dos gaúchos por suas tradições. Na falta de melhores palavras para definir os motivos, apela ao futebol: "Tu já viu algum jogo fora do Rio Grande do Sul? Que outra torcida, a não ser a de Grêmio e Inter, leva a bandeira e canta o hino de seu estado?"

    Emblemática, a Semana Farroupilha reflete a adoção crescente de símbolos e de um ideário regionalista em ambientes urbanos. Além de o Hino Rio-Grandense - do refrão "Sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra" - ter se transformado em canto obrigatório nos confrontos de clubes gaúchos contra equipes de outros estados, o mantra das arquibancadas dos anos 90, "Ah! Eu tô maluco!", criado no Rio de Janeiro, ganhou versão local: "Ah! Eu sou gaúcho!" Nenhum brasileiro afirma com tamanha contundência sua crença nos valores locais. Para o bem, porque a preservação da identidade é fundamental na construção de uma sociedade, e ao desafiar a nebulosa idéia da padronização mundial, aspecto negativo da globalização. Para o mal, quando tradicionalismo se confunde com conservadorismo, e na medida em que o discurso regional é usado como fonte de especulação comercial.

    Atentas ao aumento do culto às tradições, a publicidade e a imprensa do Rio Grande do Sul têm se apoiado à exaustão na fórmula fácil do amor à terra e na busca de um jeito localista de ver o mundo. O resultado é uma sociedade voltada para si mesma e inapta para exercer a autocrítica. Embasada em falsas premissas, a supervalorização do regionalismo tem robustecido a resistência à modernização, favorecido uma idéia de isolamento e, em casos mais extremos, alimentado uma falsa superioridade.

2 comentários:

Anônimo disse...

Me lembra quando estava em Santa Cruz do Sul, durante a Semana Far-
roupilha, e um historiador pediu a palavra. Era uma reunião do Lions, regada a um belo churrasco. E o cara mandou: "O povo gaúcho é um dos poucos que homenageia um mercenário como se fosse herói", referia-se a Garibaldi. Foi um baita mal-estar, piá.

Marcelo disse...

Não duvido!