Hoje, por ofício, passei boa parte do dia assistindo na TV Justiça ao julgamento do caso da demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol. Eu ria sozinho a cada vez em que os eminentes ministros demonstravam seus mais denodados esforços por se fazerem herméticos.
Em suas exposições de uma hora, hora e meia, meia hora, que bem poderiam ser resumidas ao menos à metade, os ministros desfilavam erudição e elogiavam uns aos outros. Muitas vezes era citando leis não pelo que dizem, mas por seu número, artigo e inciso. Outras, rebuscando o vernáculo. Lá pelas tantas, o ministro Eros Grau falou da pesquisa que fez por uma retórica adequada.
Apropriadamente, a demarcação da reserva indígena estava sendo julgada na bem demarcada reserva nacional do juridiquês selvagem.
Nos intervalos da atração, comentaristas contratados pela TV faziam uma espécie de mesa-redonda e enviavam repórteres às ruas para perguntar se advogados e estudantes de direito sabiam o que significavam alguns dos termos utilizados pelos ministros. Poucos sabiam. Um douto professor os explicava. O recado implícito era algo como "Oh, como são eruditos nossos ministros! Sabem até o que significa extra-petito!"
(Obviamente, tal como na paixão por citar as leis por seus números e incisos, a ênfase era mais na explicação das palavras do que no esclarecimento sobre os contextos.)
Agora à noite, no segundo capítulo da série "Capitu", a família de Bentinho lhe comunica que o padre vai se tornar um "protonotário apostólico". Propositalmente, mal se explica o que é, além de um padre com título pomposo. Mas o som raro da expressão rapidamente seduz os personagens. "Protonotário apostólico, vejam só!" Em outro ponto do episódio, um personagem enfatiza: "São belas as leis". (Especialmente no Brasil, país onde, a julgar apenas pelas leis que se tem, estamos preparados para qualquer problema econômico, político, social ou até moral.)
Machado de Assis era um gênio em suas sutis observações da pomposa estreiteza de mentes nacional. Outro gênio era Sérgio Buarque de Hollanda, que em seu "Raízes do Brasil" foi bem mais claro do que Machado, que basicamente fotografava os costumes com a pena da galhofa e a tinta da melancolia:
- É freqüente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares. basta que tais doutrinas e convicções se possam impor à imaginação por uma roupagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. (...)
Um amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis genéricas, que circunscrevem a realidade complexa e difícil dentro do âmbito dos nossos desejos, é dos aspectos mais constantes e significativos do caráter brasileiro. Essas construções de inteligência representam um repouso para a imaginação, comparável à exigência de regularidade a que o compasso musical convida o corpo do dançarino. (...) Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental aturado e fatigante, as idéias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da inteligência, parecem-nos constituir a verdadeira essência da sabedoria.
O julgamento sobre as terras dos índios foi postergado por um pedido de vistas, muito embora todos os ministros tenham tido tempo suficiente para analisar os fatos pertinentes ao caso e formular sua opinião a respeito. Com isso, a disputa - que já levou a vários conflitos sangrentos no extremo norte do Brasil - só deve ser resolvida pelo tribunal em 2009.
Sabe por quê? Porque o voto do relator citou estatísticas. O ministro Marco Aurélio pediu vistas para verificá-las. No esforço coletivo de burilar a retórica, as informações em estado mais bruto passaram ao largo das preocupações do ministro. Quando entraram em jogo, pegaram-no despreparado. Tivesse ele um pingo extra de curiosidade e urgência, poderia ter passado em seu gabinete durante o longo horário de almoço e checado as estatísticas antes de "prolatar" (juridiquês que significa mais ou menos "ler") seu voto. Eu, ao menos, julgaria ser o tempo suficiente para tanto.
Mas nada disso importa, na verdade. O que importa é o seguinte: salvo pelos ocupantes dos 16 assentos reservados para os índios, todos os presentes estavam devidamente de paletó e gravata, como manda o regimento do tribunal. De braços abertos no crucifixo ao fundo da sala, a imagem de Jesus Cristo amparava os guardiões da mesma Constituição que diz ser o Estado laico. Ao final de cada exposição, os ministros congratulavam o prolatante por seu brilhantismo. E segue o Brasil.
4 comentários:
Belo post, caro Marcelo, que mostra o quanto a sociedade moderna está distante de resolver verdadeiramente os seus problemas. Muita pompa e circunstância, muitas normas imbecis, muitos discursos rebuscados, porém sem consistência. Os ministros fazendo de tudo para se colocarem em pedestais inatingíveis aos pobres mortais. E as questões importantes vão sendo proteladas, negligenciadas ou colocadas num plano inferior. A forma está, como sempre, dando de dez no conteúdo! É por isso que eu não critico o sifu do presidente. Alguém por aqui tem que falar o que o povo entende! Abraço!
Grato. Eu também acho que o "sifu" não é problema. Problema é o presidente dourar a pílula da grande interrogação sobre se o Brasil pode "sifu" ou não. Mas, no ponto específico da clareza de linguagem, o Lula é um craque. Todo mundo entende o que ele diz e não precisa nem consultar o Caldas Aulete (na edição clássica, de cinco volumes) pra descobrir se concorda ou não.
Brilhante.
Como diriam no Supremo: não, brilhante é Sua Excelência. *risos*
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