quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Expressão da confusão

    (Este vai ser longo, mas é um dos casos em que eu preciso pensar usando os dedos, em busca de maior clareza de idéias. Acompanhem até o fim e depois, se tiverem um tempinho, comentem.)

Já falei outro dia que o conceito brasileiro de liberdade de expressão me fascina. O caso que tem levado o governador Roberto Requião (PR) às páginas dos jornais do Brasil inteiro nos últimos dias é um ótimo exemplo de como o foco do debate é maluco no país.

Há bastante tempo, ele é o animador de um programa sobre seu governo e suas preocupações políticas na TV Educativa paranaense. O auditório é formado por uma platéia de secretários e prefeitos. Às vezes, ele dá vazão a trotes de internet (veja aqui o vídeo). Muitas vezes, ataca adversários e a imprensa.

O Ministério Público Federal moveu uma representação na Justiça federal contra o governador, acusando-o de usar a TV estatal para fins de propaganda pessoal - afinal, atacar adversários em público é uma forma de se apresentar bem na foto. O juiz Edgard Lippmann decidiu que o MPF tinha razão. A decisão, disponível na internet, foi mais comentada do que lida. Vale a pena lê-la.

Lippmann aponta que há conflito, no caso, entre dois princípios muito importantes: a liberdade de expressão, que é sagrada, e a impessoalidade da administração pública, que também é. Nas palavras do juiz:

    "Razoável que tais críticas, sujeitas a um contrôle 'a posteriori', possam ser emitidas em reuniões governamentais reservadas, ou emitidas esporadicamente em entrevistas ou eventos públicos, todavia, não de modo sistemático como vem procedendo, lançando mão de instrumento que detém sob seu império como chefe do executivo estadual, atitude que transborda, escancaradamente, dos limites da função 'educativa' ínsita a tal rede pública."

Ou seja: nada contra o governador fazer críticas a quem quiser; tudo contra ele usar sistematicamente a televisão pública para atacar adversários. Caso desobedecesse a decisão, Requião teria de pagar multa de R$ 50 mil na primeira vez e R$ 200 mil na reincidência.

O governador, então, bateu na tecla da liberdade de expressão e disse estar sofrendo censura prévia. A Federação Nacional dos Jonalistas, que reúne os sindicatos dos jornalistas brasileiros, bateu o mesmo bumbo. O presidente da Associação Brasileira de Imprensa também, inclusive gravou um depoimento para a TV paranaense.

Requião, então, fez um programa com o carimbo de censurado (assista um trecho aqui), o que foi visto pelo juiz como provocação. Multou. Não só multou, como também condenou a TV Educativa a transmitir a cada 15 minutos uma nota de desagravo (que também está no YouTube). A freqüência de transmissão da nota me pareceu exagerada, e o Rogério Galindo achou exageros pelo texto inteiro (que não li). Mas indiscutivelmente exagerada foi a reação de Requião: suspendeu por mais ou menos um dia inteiro a programação da TV Educativa.

(Já é padrão. O Rogério lembra, no blog Caixa Zero, que na campanha eleitoral de 2006, quando concorreu à reeleição, Requião tirou do ar o site do governo estadual quando foi proibido de usá-lo para fazer propaganda pessoal.)

Quando sua procuradora-geral do estado - encarregada de defender o governador - criticou a idéia de tirar a TV do ar, ele a destratou em público e ela entregou o cargo.

Esses são os dados. Minha análise sobre o caso é a seguinte: ao bater na tecla da censura, o governador e as duas grandes entidades de jornalistas desviam o foco da questão. Requião não é imprensa, e sim governante. Não se tratou de censura prévia, e sim de tentativa de evitar que um abuso percebido não se repetisse. Especialmente em ano eleitoral, isso é um tipo clássico de conduta em que se deve ficar de olho.

A coisa já descambou pro lado venenoso da política, no velho ad-hominem: o PMDB paranaense ameaça o juiz com um dossiê que apontaria ligações escusas. O conteúdo não foi divulgado, mas jogar o holofote sobre a personalidade do juiz também é uma forma de fugir do mérito da questão. Jogar o holofote do caso sobre a personalidade do Requião também é, e foi justamente o que tentei fazer aqui. O que importa é o mérito dos atos: o que ele fez e o que o juiz decidiu.

Pra cutucar essa seara do ad-hominem, lembrando do Gre-Nal político em que vive o Brasil, resolvi trocar mentalmente os personagens.

Pense no falecido senador Antonio Carlos Magalhães usando a TV educativa baiana para atacar seus desafetos, por exemplo. Nunca fui à Bahia e nunca assisti TV lá, mas parece ter sido algo perfeitamente possível. Especialmente conhecendo o conteúdo do jornal impresso dos Magalhães, o Correio da Bahia. Não consigo ver o sindicato dos jornalistas baianos noutra posição além da de denunciar o abuso. Imagino o governador paulista José Serra hipoteticamente usando a TV Cultura da mesma forma. Não consigo ver o sindicato dos jornalistas de São Paulo reagindo de outra forma que não a de denúncia.


TEMPOS INTERESSANTES

Vivemos uma época interessante: os meios informativos explodiram de tal forma que muita gente boa - inclusive jornalistas - parece se confundir a respeito das fronteiras da propaganda. Não é por tolice, não: é que a sociedade da informação e a sociedade do espetáculo vêm gradualmente se fundindo, e os meios de propaganda ficam a cada dia mais fluidos.

A maior expressão dessa fluidez está na quantidade de profissionais que se formaram em jornalismo mas trabalham em assessorias de imprensa - ou seja, numa das engrenagens do motor da propaganda. O material gerado por eles é muitas vezes acriticamente reproduzido sem maior checagem. Às vezes, isso é apenas bobo e preguiçoso - um jeito barato de pintar papel. Noutras, comprometedor. O blog da Adriana Santana, Jornalismo Cordial, vem procurando mapear um pouco disso.

Com a internet e a febre do conteúdo colaborativo, os escoadouros para a propaganda fluida se multiplicaram. A Wikipedia, que pode ser editada por qualquer um, é um instrumento ótimo, mas também é um escoadouro fácil de informação propagandística. Já tratei disto anteriormente aqui.

Pois vejam o verbete do Requião na Wikipedia: praticamente só tem informação que poderia ter estado em seu site de campanha. Quando alguém postou a informação sobre o trote de Internet, ela foi tirada. Tudo bem, era quase bobinha mesmo. Mas aí não sobrou nada de crítica ao homem. Crítica a ele, em sites colaborativos, só no escracho da Desciclopédia.

O PR Watch relata um caso de uma relações-públicas americana que postava em sites tipo "Você Repórter" notícias atacando críticos de uma grande empresa para a qual a empresa para a qual trabalha já prestou serviços. Para fazer uma interpretação tupiniquim do que escreveu a respeito um jornalista do Talahassee Democrat, Jayson Blair é aspira perto disso, porque esse tipo de conteúdo não tem controle nenhum. Nem muita edição, geralmente. Checagem, só se alguém nota algo. Está lá ocupando espaço, aparentemente, mas vai além disso.

Nesse ambiente maluco, muita gente boa está mais perdida do que cego em tiroteio, a ponto de achar que um programa apresentado pelo governador tem as mesmas características de um jornalístico. O mais preocupante é isto: o referencial do que é jornalismo - não digo nem do que é "bom" jornalismo - parece estar se perdendo no meio desse processo, ao menos no Brasil.

5 comentários:

Anônimo disse...

Despirocou geral! Venho pensando sobre isso já há algum tempo, tipo mudança no foco de um Luis Weis, por ex., veja lá no histórico de seu blog, e no Observatório da Imprensa no geral. No rádio, a coisa está pior. às vezes a distorção é brutal: tipo comparar o parlamento europeu com o nosso brasileiro, quando deveria comparar o latino-americano, né! Enfim, já não são exemplos é a rotina de todos os meios. Será miopia, velhice, falta de ideologia, falta de inimigo explícito. Assusta-me imaginar que, a partir da quebra de sigilo ilegal de um simples caseiro pelo governo federal, qualquer ameaça hoje é possível e crível. Será que todo mundo na mídia está de rabo preso?! Mas, veja a notícia sobre o estudo sobre as mais de 900 vezes que o governo estadunidense mentiu sobre o Iraque, lá a mídia também foi ... conivente, omissa, mentirosa, ou sonsa, cega, preguiçosa? Essa confusão mental agravou-se a partir das fusões, interesses comerciais, quando a notícia virou só mercadoria perdendo seu caráter ideológico e [perdoe a ingenuidade] plural.

Marcelo disse...

Faltou assinar. Mas quando você fala em comparar parlamento europeu com o brasileiro, está se referindo àquele estudo da Transparência Brasil que eu coordenei? Caso esteja, recomendo que abra lá pra ler. Na época, fizemos questão de incluir Argentina, Chile e México. De resto, o estudo do Center for Public Integrity sobre as mentiras do Bush sobre o Iraque é simplesmente genial, como de resto tudo o que eles fazem.

Anônimo disse...

Oi, Marcelo, a comparação entre parlamentos - brsileiro e europeu, e não o latino-america, foi feito pelo Boechat no BandNews Rádio, há um bom tempo já. O trabalho da Transparência Brasil e o seu, Marcelo, formam o meu norte para tentar entender a avalanche de notícias incompletas, tendenciosas, e etc., sobre política e dinheiro público que rolam na mídia em geral. No caso Bush, o que se faz com uma constatação dessa magnitude? Impedimento?!

Anônimo disse...

ACM não fazia isso na TV Educativa, nem na Rádio Educadora, nem no Diário Oficial, apenas não deixava que os órgãos publicassem notícias favoráveis a adversários e, claro, as notícias sobre o governo eram sempre positivas. Com certeza, se fizesse, boa parte da imprensa protestaria.

Luiz Edmundo

Marcelo disse...

Sandra, no caso do Bush é de ver o que o Congresso de lá vai fazer. Por mentiras muito menos importantes, o Clinton foi processado.

Luiz, faz todo sentido.