sábado, 5 de janeiro de 2008

Voto eletrônico nos EUA e aqui

O New York Times deste domingo publica uma longa reportagem sobre as falhas nas urnas eletrônicas americanas. Ela ecoa o estudo de Ohio, que mencionei há pouco tempo (baixe aqui).

Trechos da reportagem:

    As primeiras críticas às urnas digitais vieram das margens - cidadãos descontentes e nerds de computador apavorados -, mas os medos agora subiram aos mais altos níveis do governo. Um a um, os estados estão renunciando ao uso de máquinas de votar com toque de tela. A Califórnia e a Flórida decidiram livrar-se de suas urnas eletrônicas na última primavera, e no último mês o Colorado desautorizou quase metade de seus equipamentos de toque em tela. Também no mês passado, Jennifer Brunner, a secretária de estado do Colorado, lançou um relatório sobre as falhas das urnas em Cuyahoga argumentando que telas de toque "podem pôr em risco a integridade do processo de votação". Ela ficou tão preocupada que agora está forçando Cuyahoga a desistir das máquinas de toque em tela e voltar à votação em papel - antes da primária de Ohio, que está marcada para 4 de março. O senador Bill Nelson, democrata da Flórida, e o senador Sheldon Whitehouse, democrata de Rhode Island, encaminharam um projeto que bane o uso de máquinas com toque de tela no país inteiro até 2012.

    É difícil dizer com que freqüência os votos genuinamente se perderam. Michael Shamos, cientista da computação na Universidade Carnegie Mellon que examina sistemas de votação eletrônica há mais de 25 anos, estima que cerca de 10% das máquinas de toque em tela "falham" a cada eleição. "Em geral, essas falhas resultam na perda de zero ou um voto", ele diz. "Mas são muito perturbadoras para o público".

    De fato, num ambiente político mais otimista, esse nível de erro poderia ser considerado aceitável. Mas, no país altamente partidário e dividido que temos hoje, as eleições podem ser decididas por margens incomumente apertadas - e muitas vezes são amargamente contestadas. A desconfiança nas máquinas de toque de tela é, portanto, tecnológica e ideológica em partes iguais. "Um pequeno número de votos pode ter grande impacto, portanto as máquinas são parte da era da mão-suada", diz Doug Chapin, diretor do Electionline.org, um grupo não-partidário que monitora a reforma eleitoral. Os críticos passaram anos reclamando de corrupção e do fantasma de hackers ideológicos manipulando uma eleição. Mas o maior problema pode simplesmente ser inerente à natureza dos computadores: eles podem ser precisos, mas também são caprichosos, abertos a falhas que nós simplesmente não podemos antecipar.

    (...) Novas tecnologias de votação tendem a emergir de crises de confiança. Mudamos sistemas muito raramente, em resposta à ansiedade pública de que os resultados eleitorais não merecem mais confiança. Os Estados Unidos votaram em papel no século 19, até que o recheamento de urnas e funcionários ineptos que perdiam sacos de votos levaram muitos a abandonar esse sistema. Alguns administradores de eleições a seguir adotaram máquinas com alavancas, que registram cada voto mecanicamente. Mas as máquinas com alavancas têm problemas próprios, sendo um deles o fato de tornarem impossível a recontagem significativa por não preservarem cada voto individual. A partir da década de 1960, elas foram amplamente substituídas por sistemas de cartões perfurados, em que os eleitores fazem buracos nos votos, que podem ser guardados para recontar. Os cartões funcionaram por décadas sem controvérsia.

    Até, é claro, o fiasco eleitoral de 2000. (...)

    A eleição de 2000 ilustrou a regra básica dos sistemas de votação: se eles produzem resultados ambígüos, estão destinados a ficar sob suspeita. A eleição nunca fica resolvida na cabeça do público. Até hoje, muitos apoiadores de Gore recusam-se a aceitar a legitimidade da presidência de George W. Bush; e, ao decidir em última análise a eleição presidencial de 2000, a Suprema Corte também foi criticada por parecer exageradamente partidária.

    (...) A questão, é claro, é se é ou não possível confiar nas máquinas para registrar adequadamente os votos. Ed Felten acha que não. Ele é cientista da computação na Universidade de Princeton, e tornou-se famoso por analisar - e criticar - as máquinas com toque de tela. Na verdade, os primeiros críticos sérios das máquinas, começando há dez anos atrás, eram cientistas da computação. Seria possível imaginar que os cientistas da computação fossem fãs de mecanismos computadorizados de contagem de votos, mas ocorre que, quanto mais você sabe sobre os computadores, mais fácil é ficar aterrorizado com o fato de eles conduzirem eleições.

    Isso porque os cientistas da computação compreendem, por sua dura experiência, que softwares complexos não podem funcionar perfeitamente o tempo todo. É da natureza do animal. Uma miríade de coisas pode dar errado. O software pode ter bugs - erros de programação feitos por programadores cansados ou com excesso de trabalho. Ou os eleitores podem fazer coisas que as máquinas não esperam, como tocar a tela em dois lugares de uma só vez. "Os computadores dão pau, e não sabemos por quê", disse Felten. "É simplesmente uma rotina dos computadores."

    (...) Mas a verdade é que é difícil para cientistas da computação descobrir o quanto as máquinas foram bem ou mal feitas, porque os fabricantes mantêm em sigilo os detalhes da manufatura. Como muitas fábricas de software, eles guardam seu "código-fonte" - os programas de computador que rodam em suas máquinas - como segredo profissional. Não se permite que o público veja o código, então os especialistas em computação que pretendem verificar se eles têm falhas ou são confiáveis não têm acesso a ele. Felten e grupos que defendem os direitos do eleitor argumentam que essa cultura de segredo tipo "caixa preta" é o maior problema com as máquinas de votar. Como as máquinas não são transparentes, sua confiabilidade não merece confiança. Os fabricantes discordam.

Vale a pena ler a matéria inteira, embora seja longa. Diz muito sobre o nosso país.

Aqui no Brasil, a questão tecnológica não é muito diferente. As urnas eletrônicas são usadas no país todo há dez anos. Na imprensa, porém, continua sendo uma não-questão, até porque a Justiça Eleitoral assegura que está tudo certo, os jornalistas anotam e tudo fica por isso mesmo.

Há uns seis anos e meio, fiz uma entrevista com o especialista Roy Saltman, para a Folha. Não chegou a ser publicada: não era ano eleitoral, então questões sobre tecnologia de votação não estavam exatamente na ordem do dia. Se um dia aparecesse espaço ou gancho, sairia. Deixei o jornal antes disso - e uma semana depois de eu sair houve um gancho, mas eu não estava mais lá pra lembrar da matéria. Guardei o texto para futura referência. Abaixo, uma versão editada:

    O maior problema da urna eletrônica, segundo especialistas brasileiros e americanos, é que ela não permite a recontagem dos votos se houver dúvida sobre os resultados. Cada voto é somado ao total do candidato, e a manifestação individual do eleitor evapora após a confirmação da escolha.

    Segundo o americano Roy Saltman, especialista em eleições eletrônicas desde os anos 70 e consultor do TSE na implantação das urnas, em 1996, a falta de mecanismos de verificação das eleições digitais é um erro grosseiro.

    O consultor propõe que, para as próximas eleições, haja mudanças técnicas, administrativas e legislativas para retomar a possibilidade da recontagem.

    Isso, para ele, é crucial: em relatório de 1988, ele já afirmava que a diversidade de sistemas de contagem de votos nos EUA poderia causar um problema como o que ocorreu nas eleições da Flórida, no ano passado. Lá, a recontagem permitiu verificar erros causados por cédulas mal-confeccionadas.

    Saltman foi responsável, nos anos 80, por definir padrões para eleições completamente digitais, como a brasileira. Por seu rigor, só 8% das cidades americanas adotaram sistemas eletrônicos.

    O requisito básico é a geração de uma imagem do voto, eletrônica ou em papel, para que se possa recontar os votos de forma independente - o que a urna brasileira não permite. Para Saltman, isso dá fragilidade ao sistema.

    O consultor repetiu um argumento levantado por técnicos em informática que criticam o processo eletrônico como está implementado hoje.

    Amílcar Brunazo Filho, consultor técnico da subcomissão do voto eletrônico do Senado, diz que, como a urna não permite a recontagem e os partidos não fiscalizam os programas, a confiança na lisura da eleição depende só da fé subjetiva na honestidade dos envolvidos, sem se poder confirmá-la.

    Saltman ressalta que é muito importante que os programas utilizados pela urna sejam completamente verificados por pessoas de fora do TSE e que não sejam alterados depois da verificação.

    A lei eleitoral dá cinco dias para que os técnicos dos partidos verifiquem o software usado. Só o PT apresentou um técnico para verificar as urnas. Depois da verificação, informou um dos responsáveis técnicos pela urna eletrônica, houve algumas alterações no programa para, segundo ele, corrigir pequenos erros.

    Relatório
    Em 1996, quando o TSE implantou pela primeira vez as urnas eletrônicas em algumas cidades brasileiras, Saltman foi convidado a observar a implantação do sistema. Ao final da observação, encaminhou um relatório ao TSE.

    O documento continha diversas observações e sugestões para aprimoramento do sistema. A única implementada foi a retirada de anúncios publicitários que eram mostrados aos eleitores.

    Pelo relatório, uma saída para fiscalizar todas as etapas de programação da urna seria um comitê com técnicos dos partidos políticos, do TSE e de outros setores representativos. Esse comitê acompanharia todo o processo de confecção da urna, com "generosa assistência e aquiescência do governo", segundo o relatório.

    O relatório aponta que essas medidas são necessárias para a transparência do sistema, já que o fato de a autoridade eleitoral fazer parte do governo (o TSE é um ramo do Poder Judiciário) poderia levar a questionamentos sérios sobre a lisura da votação.

    Na verificação dos programas, em agosto do ano passado, o TSE vedou o acesso dos técnicos dos partidos ao chamado "bloco de segurança" das urnas eletrônicas.

    "Se não há essa generosa aquiescência e, sem dúvida, se o governo coloca barreiras no caminho dos fiscais, então o esforço desses observadores independentes terá muitas dificuldades para ser efetivamente levado adiante", disse Saltman.

Saltman foi entrevistado mais recentemente pelo projeto Nieman Watchdog, da Universidade Harvard. Vale a pena ler o que ele diz.

No Brasil, depois que eu parei de fazer esse tipo de reportagem, ao que eu lembre não houve continuação. Merecia haver.

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o artigo.

Porém, existem algumas formas de se fazer uma votação eletrônica que poderia ser posteriormente verificada. Pelo menos já li sobre isso num artigo (http://www.voterverifiable.com/article.pdf). Não sei porém porque isso nunca foi para frente....

Marcelo disse...

Existe, sim. Um artigo recente do Roy Saltman explicita isso: o papel não é garantia de o voto estar certo. Mas o ponto é exatamente a necessidade de verificação.

negoailso disse...

rapaz, aqui em Alagouas, na última eleição para governador, tínhamos um candidato favorito a ganhar no primeiro turno. só que o adversário do homem era téo vilela, candidato de renan [não chega a ser pau-mandado de renan, mas são da mesma patotinha]; e não é que téo ganhou NO PRIMEIRO TURNO? não faltaram questionamentos quanto à lisura do pleito e, inclusive, várias urnas eletrônicas foram recolhidas, por ordem do TRE, ao pátio da PF. sabem no que deu? em nada... a investigação, simplesmente, não andou...

a questão principal é, como ficou claro no texto, que as tais urnas são tidas como infalíveis, que não há sequer questão quanto a falibilidade das mesmas... talvez isso [somado ao poder político de renan] tenha contribuído para o desenlace [ou falta de] do caso.