Quatro anos depois da polêmica do falso Herzog, o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, apresenta ação direta de inconstitucionalidade questionando as leis que fundamentam o dogma do sigilo no Brasil.
Ele questiona especialmente a forma como o governo reagiu para despachar a questão em 2004, por meio de medida provisória, depois convertida em lei. No lugar do sigilo eterno criado pelo decreto de 2003, o governo criou uma comissão ligada ao poder executivo com poderes para abrir ou vedar documentos. A ação também questiona trechos da Lei dos Arquivos.
Para Antonio Fernando, os sucessivos governos não dão a mínima importância ao direito de acesso a informações públicas. Simples assim. Ele se preocupa principalmente com o acesso aos documentos da ditadura, sem entrar muito na questão dos documentos administrativos. É um defeito da ação, mas não é tão grave: os princípios tanto da argumentação quanto das leis valem para documentos administrativos - como o banco de dados da Dilma, já requisitado formalmente por este blog mas de cujo fornecimento nunca recebemos resposta.
Reproduzo aqui alguns trechos interessantes da Adin.
- Como sabemos, numa República Democrática, nem a cidadania nem os direitos políticos se resumem a votar e ser votado. Incluem também a participação ativa dos cidadãos no devido processo político, peticionando aos Poderes públicos, fazendo as suas sugestões, postulando o que de direito, conditio e condendo, questionando as decisões proferidas e, enfim, atuando plenamente na civitas. O pressuposto dessa atuação é exatamente o direito à informação (art. 5º, XIV e XXXIII).
A Medida Provisória impugnada visou a disciplinar esse direito. Não podia. Mas o fez, contrariando a Constituição. É certo que o Congresso Nacional a converteu em Lei, mas esse sério vício de origem contamina a Lei de conversão.
(...) Note-se que os artigos em questão transferem ao Executivo o poder de classificar as categorias de sigilo e impor as restrições a seu acesso. Não é o próprio Executivo quem detém a quase totalidade de dados históricos e políticos que deveria ser franqueados ao público? Não é ao Executivo que se vinculam as diversas agências de inteligência? Não é o Executivo a quem interessa diretamente o segredo, sob as mais diversas inspirações e móveis? Não é o Executivo o detentor perpétuo (e recalcitrante) das raisons d’état? Como, então, a ele delegar esse tarefa que acaba por definir o (e interferir no) núcleo essencial do direito fundamental à informação?
Cuida-se, como vemos, de uma delegação legislativa disfarçada e insuscetível de permanecer em vigor. Estamos a tratar de um direito individual e coletivo, de cidadania e político. Sendo assim, violaram-se os artigos constitucionais 5º, II; 68, § 1º, II; art. 5º, XXXIII e 1º, caput, II e parágrafo único.
(...) No caso concreto, não houve nem prudência nem proporcionalidade do legislador. Observe-se, em primeiro plano, que a honra e imagem, utilizados para fundamentar 100 anos de prazo de sigilo, destinam a proteger o cidadão contra o Estado ou terceiros, não, todavia, para tutelar agentes públicos ou sua eventual biografia. Mesmo em relação aos particulares, não parece justificável que seus registros, especialmente se tenham repercussão histórica, permaneçam por décadas, e mesmo após seu o óbito, sob o selo do sigilo.
Depois, o legislador, ao prever prazos extremamente ampliados para revelação de fatos considerados sigilosos por atingir a honra e a imagem das pessoas (cem anos) ou à segurança da sociedade e do Estado (trinta anos) não balanceou adequadamente os princípios em confronto. E pior, no artigo 6º, § 2º, da Lei 11.111/2005, ao conferir à Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, o poder para “permanência da ressalva ao acesso do documento pelo tempo que estipular”, acabou prevendo uma cláusula de prorrogação indefinida, extravasando todos os limites de configuração admitidos constitucionalmente.
As informações sobre eventos sucedidos no regime político anterior não são disponibilizadas à sociedade em tempo razoável, sob pretexto direto ou A verdade é sempre uma operação de julgamento crítico, nunca uma imposição. É como assinala Kant: ‘‘verdade e erro (…) somente podem ser encontrados num julgamento”. E mais importante: o erro não está, eventualmente, no resultado desse julgamento, mas no fato de não se julgar segundo a razão.17 Fazendo uso das lições kantianas, podemos afirmar que se não se der o uso prático da razão pública em torno das questões e fatos, sonegados por um século ou mais, carecerá de legitimidade toda política voltada para esquecer o passado.indireto de salvaguardar eventuais anistiados. Pois bem, pessoas podem eventualmente terem sido anistiadas, mas isso não importa esquecimentos dos episódios antecedentes. Foi o direito à verdade que acabou amesquinhado pela ponderação legislativa.
Ademais, uma lei que tenha por fim evitar que tais informações venham à luz, como diretamente sucede com a norma impugnada, na prática, veda a indagação sobre os fatos violadores dos direitos fundamentais, legitimando tais fatos e, ao fim, derrogando tais direitos.
A íntegra da ação pode ser baixada neste link.
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