segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Máfias e assimetrias


O filme "Gomorra" ganhou o prêmio europeu de cinema. Ele se baseia no livro homônimo do escritor Roberto Saviano, a quem a Máfia ameaçou matar até o natal. O filme, já comparado ao "Cidade de Deus" por mostrar como a Máfia domina regiões inteiras em Nápoles, já foi exibido na Mostra de Cinema de São Paulo e está em pré-estréia na cidade.

Enquanto o diretor Matteo Garrone recebia os cinco prêmios dados ao filme, o escritor francês JMG le Clézio dava na Suécia seu discurso de aceitação do Nobel de literatura. O tema básico da fala foi um alerta sobre os perigos da "pobreza de informação". Segundo ele, a indústria literária vem focando esforços na pesquisa de como levar os livros para o formato digital, o que pode elitizar o produto. Mais produtivo, segundo ele, seria estudar formas de ampliar o acesso ao livro de papel em países onde a leitura não é muito difundida. Suas propostas:

    "Joint publication with developing countries, the establishment of funds for lending libraries and mobile libraries, and, overall, greater attention to requests from and works in so-called minority languages – which are often clearly in the majority – would enable literature to continue to be this wonderful tool for self-knowledge, for the discovery of others, and for listening to the concert of humankind, in all the rich variety of its themes and modulations."

O que têm a ver os dois prêmios?

Hoje pela manhã, fui procurar o livro de Saviano. Quero tentar lê-lo antes de a Camorra conseguir cumprir sua promessa de matá-lo até o Natal. Deparei-me com um tema que usei várias vezes no começo do blog, mas no qual não toco há muito tempo: a desigualdade no acesso aos livros.

"Gomorra" foi lançado em português pela editora Caderno. A edição estava exposta na livraria e quase a comprei. Quando fui olhar o preço, quase tive um infarto: custava mais de R$ 90. Pesquisei quanto custavam as edições em outras línguas. O preço da edição em português só perdia para o da edição francesa. Veja só:


Só agora há pouco descobri que a edição da Caderno é de Portugal. A edição brasileira (Gomorra - a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana, da Bertrand Brasil) sai depois do dia 15, talvez esperando ganhar publicidade com a eventual morte do autor dez dias depois. Ao preço de R$ 39, ela custará mais caro que as edições britânica e espanhola disponíveis no Brasil.

Eu comprei a edição britânica, como tenho comprado muitos livros em inglês nos últimos anos por saírem mais baratos que os nacionais e por vezes terem até mais conteúdo. Meu Freakonomics, por exemplo, é da edição de bolso da Penguin com textos extras.

Como leio com facilidade em inglês, fico muito grato por esse subsídio involuntário que tenho à minha leitura. Mas fico pensando nas várias assimetrias dessa situação:

    1) Para ter acesso a esse "subsídio", o cidadão precisa saber ler em inglês. Geralmente se paga para fazer cursos e eventualmente poder ler numa segunda língua.

    2) O preço que se paga aqui por livros importados já traz embutido até mesmo o custo do transporte das obras, da Europa até o Brasil. Então, um leitor inglês pagou ainda mais barato que o brasileiro que comprou a mesma edição no Brasil - com a vantagem de a renda per capita lá ser bem maior que a daqui.

    3) A diferença de R$ 7 entre o preço da futura edição brasileira e o da edição britânica que eu comprei certamente pesa mais no bolso de alguém que não lê em inglês porque não teve grana pra fazer um curso do que no meu bolso atual.

Segundo pesquisa do Observatório Brasileiro do Livro, 77 milhões de brasileiros não lêem. Numa população de 200 milhões, isso dá quase 4 em cada 10. E, dos outros 6, ainda se deve levar em conta que há os leitores muito eventuais e os que só lêem coisas tipo auto-ajuda. (E, verdade seja dita, as três categorias - não leitores, leitores eventuais e leitores de bobagens - incluem muitos brasileiros que têm bem mais poder aquisitivo do que os que não compram livros por conta do preço.)

O mercado livreiro brasileiro costuma dizer que o preço do livro é influenciado por vários fatores, incluindo as baixas tiragens que se tem no Brasil e os custos de distribuição num país desse tamanho. É verdade. Mas também é verdade que os livros brasileiros também são caros porque são feitos num papel mais pesado e com capas mais grossas que as edições populares gringas. E também é verdade o círculo vicioso segundo o qual o livro é caro porque vende pouco e vende pouco porque é caro.

Para mim, tanto faz ler em português ou em inglês. Eu preferiria comprar livros nacionais. Mas, se um livro inglês está mais barato, sequer paro para pensar a respeito. Um livro a menos vendido pela editora brasileira. Sempre que converso sobre isso com amigos que também observaram o mesmo, ouço a mesma coisa. Então não é só um livro a menos - são vários. Mais ainda: são leitores que têm o hábito da leitura e estão acostumados a comprar livros com freqüência. Basicamente, portanto, parte dos melhores fregueses das editoras.

Na sexta-feira, o Valor publicou um artigo do Alberto Carlos de Almeida sobre "Os gargalos do Brasil". Ele comparava a concentração de carros por habitantes em vários estados do Brasil e em vários países ricos. Não é um indicador que me agrade muito, considerando o inferno em que a lógica do carro transformou as cidades, mas vale a pena observar o raciocínio dele.

De certa forma, o mesmo raciocínio se aplica ao mercado de livros no Brasil.

Mais ainda: os mercados ilegais, como a Camorra do livro de Salviano, surgem especialmente por conta de assimetrias nos preços. Se o maço de cigarros custa R$ 2,50 na banca de revistas e R$ 1 no camelô logo à frente, e o consumidor julga que os dois produtos matam igualmente, abre-se um incentivo poderoso para o mercado ilegal de cigarros, certo?

No caso do mercado do livro, não existe exatamente um mercado ilegal. Há os sebos, que são perfeitamente legais, mas livros novos não chegam a eles. (E, pra falar a verdade, mesmo os velhos não têm tanta procura assim.) A disputa é entre o hábito da leitura e a inércia do analfabetismo funcional institucional. As assimetrias, infelizmente, me parecem favorecer a segunda.

Um comentário:

Barone disse...

"Segundo pesquisa do Observatório Brasileiro do Livro, 77 milhões de brasileiros não lêem. Numa população de 200 milhões, isso dá quase 4 em cada 10. E, dos outros 6, ainda se deve levar em conta que há os leitores muito eventuais e os que só lêem coisas tipo auto-ajuda."

Incrível...