terça-feira, 20 de novembro de 2007

Definir sigilo sem garantir acesso é inconstitucional

A Ordem dos Advogados do Brasil entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade, no Supremo Tribunal Federal, questionando se as leis que garantem o sigilo de documentos atendem ou não a Constituição brasileira.

Historicamente, toda legislação sobre documentos públicos se preocupou mais em regulamentar o sigilo do que a divulgação. Duas leis são questionadas:

    1) Política Nacional dos Arquivos Públicos e Privados - Lei 8.159/91
    A OAB questiona o artigo 23, segundo o qual um decreto fixará as categorias de sigilo dos documentos produzidos pela administração pública. O artigo determina que documentos sigilosos sobre a segurança nacional devem ficar trancados por 30 anos, renováveis por mais 30, e que os que dizem respeito à honra e a imagem de indivíduos devem ficar restritos por até 100 anos.

    Para a organização, essas determinações ferem preceitos constitucionais. Seja por vedarem o acesso a informações de interesse público, seja por admitirem que decretos possam definir o que é sigiloso, seja pelos prazos arbitrários determinados. Na explicação do STF:

      A OAB argumenta que, dependendo do caso, os prazos podem ser longos ou curtos demais. No primeiro caso, cita documentos de um golpe de Estado frustrado, cujos documentos podem deixar de ser sigilosos logo em seguida. Quanto ao segundo, menciona situação de permanente conflito entre populações limítrofes que perdurem por mais de 100 anos e nos quais a divulgação de documentos poderia piorar a situação de conflito.

    2) Lei da comissão dos documentos - Lei 11.111/2005
    Essa lei cria uma comissão ligada à Casa Civil, que analisaria e liberaria documentos sigilosos. Até agora, nenhum documento novo foi liberado por ela.

    Segundo a OAB, o vício de origem dessa lei está no fato de ela se originar da Medida Provisória 228/2004. Ocorre que, segundo a Constituição, questões de cidadania não podem ser tratadas em MP. Além disso, a MP original também não atenderia ao critério da urgência, necessário para a edição de MPs.

A urgência com que a MP foi editada, em 2004, diz respeito à própria origem do pedido de Adin da OAB. Participei de todos os debates a respeito, então os reconstruo aqui.

Em 2002, três dias antes de deixar o governo, o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou um decreto dobrando os prazos de sigilo de documentos produzidos pela administração pública. Mais do que isso, o decreto criou o sigilo eterno, ao permitir que documentos ultra-secretos (restritos por 50 anos) pudessem ter sua classificação renovada indefinidamente.

Consta que essa medida foi tomada para satisfazer setores do Exército e do Itamaraty, que não queriam ver liberadas informações já com mais de século e meio de idade, em que todos os personagens já morreram. Especialmente informações sobre a Guerra do Paraguai e sobre a forma como o Acre foi anexado ao Brasil. O Brasil é considerado um país sem disputas territoriais com os vizinhos, e esse status faz com que o país seja sempre procurado para encontros internacionais.

Ao tomar posse, Lula poderia ter revogado o tal decreto, visto que ele só passaria a ter efeito em março de 2003. Mas ele o sancionou. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo tinha três semanas de existência quando esse decreto saiu. A notícia foi uma das primeiras que colocamos no website da associação - isso quando eu ainda o fazia lá num cantinho do meu quarto, em Porto Alegre.

No Brasil, como não há uma cultura cidadã de requerer informações ao poder público, tirando alguns malucos quase ninguém dava bola para o decreto do sigilo eterno. Foi preciso o Caso do Herzog Errado para que ele entrasse em pauta.

Em 2004, o jornal Correio Braziliense divulgou fotos de um homem calvo, nu, com a mão no rosto. Ele era identificado pelo jornal como o jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 no DOPS paulista. Só que não era ele - era um padre canadense ligado à Teologia da Libertação. Um caso que só não foi tão lamentável quanto o do Herzog porque, ainda bem, o padre não foi assassinado e pôde dar entrevistas constrangidas a respeito da situação em que as fotos foram tiradas.

O caso foi um gol contra do governo Lula. Formado por políticos com longo histórico de oposição, onde muitos deles comeram o pão que o diabo amassou no regime militar, o governo repetia que não havia arquivos.

Aí aparece a Abin, ex-SNI, dizer que o careca não era Herzog, e sim o padre canadense. Só que, se identificaram, é porque HAVIA arquivos. A imprensa toda caiu sobre a questão, e com isso pipocaram casos de literal queima de arquivos.

Foi nesse contexto que o decreto do sigilo eterno entrou na pauta nacional. Isso impulsionou a adesão de 19 entidades - incluindo a OAB - ao Fórum do Direito de Acesso a Informações Públicas, de iniciativa da Abraji, criado em 25 de novembro de 2004. O encontro já estava marcado, mas o fato de a questão entrar em pauta foi fundamental. Foi nesse encontro que se falou pela primeira vez em argüir a inconstitucionalidade das leis que promovem o sigilo.

Essa mobilização criou a urgência da MP que gerou a lei 11.111. O governo sentiu que a batata estava assando e precisava responder. Então, lascou a MP.

* * *


Desculpem me estender tanto. Mas é preciso enxergar a questão - crucial no Brasil e em qualquer outro país - em seu devido contexto. A ADIN da OAB é o passo mais importante dado até agora para o avanço da questão do direito de acesso a informações públicas.

Hoje, o artigo 5, inciso 33, da Constituição está regulamentado na lei questionada pela OAB. Caindo ela, abre-se um vácuo legal.

Há um outro texto que regulamenta esse inciso. É o que foi preparado pela Controladoria-Geral da União e que deveria ser enviado ao Congresso ainda no primeiro ano do segundo mandato de Lula, conforme o próprio presidente prometeu na última semana de campanha. Em agosto, a Casa Civil sequer confirmava a tramitação do projeto.

No mundo inteiro, 68 países já têm leis que garantem o direito de acesso a informações públicas. Na África, o Zimbábue já tem sua lei e a Nigéria está avançando na implantação.

No Brasil, o direito de acesso a informações públicas ainda é um ilustre desconhecido. Mas quem sabe desta vez a coisa anda?

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