terça-feira, 28 de outubro de 2008

Uma triste equação e uma longa digressão

Nunca fui muito bom em matemática, mas vejam esta equação aqui:

    (Espetáculo + incolumidade) x (tradição de abuso + desconfiança) = tristes modas

Em Marília, mais um descornado, este de 19 anos, manteve a ex-namorada (de 14) em cárcere privado. Foram dois dias. Ele libertou a guria hoje de manhã e deu no pé. São Paulo parece ter-se tornado a meca dos descornados e perigosos, com três mortes desde o seqüestro da Eloá (fora a da própria), como se pode observar nesta visualização do mapa exclusivo deste blog:


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Um dos principais motivos possíveis pelos quais isso virou moda depois do caso Lindemberg é possivelmente o fato de que o único que não saiu ferido foi o seqüestrador. Dois artigos publicados nos últimos dias tocam bem nesse assunto. Eles convergem num ponto, divergem noutro.

"Uma verdade apavorante", de Paulo Moreira Leite, na Época desta semana:

    Deve-se ao coronel Eduardo José Félix, comandante da Tropa de Choque, a principal revelação sobre o estado de espírito da Polícia Militar de São Paulo. Na hora de explicar por que os atiradores de elite da PM desperdiçaram seis oportunidades para alvejar o Príncipe do Gueto que matou Eloá Pimentel, o coronel declarou: “Inevitavelmente os senhores da imprensa estariam questionando o Gate do mesmo jeito. É um garoto de 22 anos, sem antecedentes, que estava passando por uma crise nervosa”.

    A declaração é equivocada, já que a polícia não é um serviço de relações públicas e tem a obrigação legal de proteger vidas humanas em primeiro lugar. Não é difícil entender o comportamento da PM. A culpa não é da imprensa, mas a explicação é apavorante.

    A PM tem medo. Muitas vezes, quando um atirador de elite poderia entrar em ação – depois que todos os meios de negociação pacífica foram esgotados –, a voz de comando gagueja e as mãos que deveriam apertar o gatilho tremem. Criados nas trincheiras européias da Primeira Guerra Mundial, os atiradores de elite não são uma moda recente e estão em atividade no mundo inteiro. Mas o receio, no Brasil, é real, e nasceu em 1990.

    No esforço para libertar uma refém num assalto em Perdizes, um atirador de elite fez um disparo de filme. Matou o criminoso na hora. Mas a bala seguiu em frente e alvejou a vítima, que faleceu no hospital. O PM foi preso, julgado e condenado. Ouviu uma sentença humilhante, na qual o disparo era definido como inconseqüente e irresponsável.

    De lá para cá, os atiradores de elite baixaram o fuzil. É cada vez mais freqüente encontrar situações nas quais seus serviços poderiam ser usados – na opinião da maioria dos especialistas –, mas nem se cogita. É como se, por causa de um erro médico, fosse necessário abandonar uma técnica cirúrgica consagrada pela medicina.

"A liberdade e o direito com responsabilidade", da procuradora da República Ana Lúcia Amaral, hoje no Observatório da Imprensa:

    Mantendo a atenção de toda a mídia por cerca de 100 horas, [Lindemberg] teve o domínio da situação todo o tempo. Chegou a fazer disparos a esmo, colocando em risco outras pessoas, sem que a polícia reagisse, e exibiu-se por trás da refém, apontando a arma para sua cabeça. Mesmo havendo previsão legal da legítima defesa de terceiro (art. 25 do Código Penal), a polícia não atirou no seqüestrador.

    Todavia, a Polícia Militar de há muito é a "Geni": se atirasse, não faltaria quem criticasse a violência como desnecessária, pois não esgotadas as negociações. Entidades de defesa dos direitos humanos acusariam a polícia de execução sumária, sem julgamento por juiz competente, violando o direito à ampla defesa e o princípio da dignidade da pessoas humana etc., etc.

    (...) Não estou a defender a violência policial como forma de solução dos problemas de criminalidade, mas a ponderar se a imprensa não poderia exercer um certo controle da atividade policial, em tempo real, mas não transmitindo ao vivo.

Pessoalmente? Sempre fico com um pé atrás quando se fala em "pactos", "acordos", "parcerias" para a imprensa publicar ou deixar de publicar alguma coisa em nome de algum bom sentimento. Mas também acho que ninguém precisa de cobertura minuto a minuto de um caso triste desses. Acho que a informação é muito importante - até pra botar na mesa a discussão sobre políticas de segurança. Mas ninguém precisa desse circo todo que ocorreu - até porque o circo estimula reações doentias. Pode não causar, mas certamente dá idéias.

Existe um razoável meio termo, já estabelecido na cobertura de seqüestros em geral: a imprensa acompanha, mas só publica quando termina. Seria um bom meio-termo pra um caso desses? Eu acho que sim. Mas se for estabelecido por decreto eu sou contra. Teria que ser uma opção editorial de bom senso. Mas existe bom senso no mundo, ainda mais com trocentos sites minuto a minuto, além de TVs e rádios de notícias 24 horas competindo pra ver quem derruba primeiro o avião na Faria Lima?

ATENÇÃO: Os vários parágrafos a seguir contêm digressões sobre jornalismo. Caso julgue perda de tempo, não precisa ler mais pra frente.

Essa opinião tem muito a ver com minhas idiossincrasias profissionais - como, por exemplo, a de achar inútil todo tipo de pseudo-evento planejado pra atrair jornalistas: coisas como entrevistas coletivas, cafés-da-manhã-para-a-imprensa, debates eleitorais, coberturas-manada em porta de delegacia e outros que-tais. Também tem a ver com minha idiossincrasia fundamental, a de preferir os dados às aspas. E tem um pouquinho de egoísmo, também: prefiro cavar minhas próprias pautas a cobrir o assunto-da-vez que todo mundo está cobrindo.

(Um pouco por sorte, outro tanto por teimosia, outro tanto por direcionamento profissional, dá pra contar nos dedos quantas vezes precisei cobrir esse tipo de evento. Mas, de qualquer forma, eu me sinto incompetente nessas ocasiões, porque não é o que eu sei fazer. Há quem saiba e goste. Mas não é minha praia.)

Até porque o Brasil não pára enquanto ocorre o assunto da vez, mas as redações estão cada vez mais enxutas. É outra equação: despejar muitos profissionais para cobrir um só assunto tira profissionais da cobertura de todos os outros. E a ênfase primordial num só assunto favorece o declaratório, a espetacularização e a instrumentalização da cobertura por fontes cada vez mais profissionalizadas e portadoras dos mais diversos interesses. A compreensão, aí, vai pras cucuias.

É exatamente a esse fenômeno que o Carl Bernstein se refere no artigo "O Triunfo da Cultura Idiota", de 1992:

    O maior crime do negócio da notícia hoje é ficar para trás ou perder uma grande matéria. Então, a velocidade e a quantidade substituem a perfeição e a qualidade, a exatidão e o contexto. A pressão para competir, o medo de que alguém vá dar primeiro a notícia, cria um ambiente frenético onde uma nevasca de informações é apresentada e questões sérias não podem ser levantadas: e mesmo naquelas bem-aventuradas instâncias em que tais questões são feitas, ninguém passou meses trabalhando para verificar e respondê-las corretamente.

    Reportagem não é estenografia. É a melhor versão da verdade possível de se obter. As tendências realmente significativas no jornalismo não têm ido em direção a um compromisso com a melhor e mais complexa versão da verdade possível de se obter, não em direção a construir um novo jornalismo baseado em reportagens sérias e refletidas. Essas não são as prioridades que saltam para o leitor da maior parte de nossos jornais, nem o que o espectador recebe quando liga nos noticiários.

É impressionante como ele fica mais atual a cada ano que passa, quanto mais se multiplicam os canais pelos quais as notícias-commodity chegam aos seus consumidores. E quanto mais isso acontece, mais o circo se potencializa - e cada vez mais alto gritam os guardiões da decência com propostas censórias e jogando as coberturas da TV trash e do jornal sóbrio no mesmo saco basicamente por tratarem do mesmo assunto que se espetacularizou.

Já reparou nas "críticas de mídia" que vêm circulando por aí sobre a cobertura do caso Eloá? Pois é. Ainda ontem era a mesma gritaria sobre o caso Isabella - que foi coberto do mesmo jeito commoditizado.

E aqui volto ao meu maestro soberano Philip Meyer, que escreveu há pouco um interessante artigo na American Journalism Review onde ele reformula seu conceito de "jornalismo de precisão", dos anos 70, como "jornalismo baseado em evidências":

    I still believe that a newspaper's most important product, the product least vulnerable to substitution, is community influence. It gains this influence by being the trusted source for locally produced news, analysis and investigative reporting about public affairs. This influence makes it more attractive to advertisers.

    By news, I don't mean stenographic coverage of public meetings, channeling press releases or listing unanalyzed collections of facts. The old hunter-gatherer model of journalism is no longer sufficient. Now that information is so plentiful, we don't need new information so much as help in processing what's already available. Just as the development of modern agriculture led to a demand for varieties of processed food, the information age has created a demand for processed information. We need someone to put it into context, give it theoretical framing and suggest ways to act on it.

    The raw material for this processing is evidence-based journalism, something that bloggers are not good at originating.

    Not all readers demand such quality, but the educated, opinion-leading, news-junkie core of the audience always will. They will insist on it as a defense against "persuasive communication," the euphemism for advertising, public relations and spin that exploits the confusion of information overload. Readers need and want to be equipped with truth-based defenses.

    Newspapers might have a chance if they can meet that need by holding on to the kind of content that gives them their natural community influence. To keep the resources for doing that, they will have to jettison the frivolous items in the content buffet.

Acho que esse conceito de demanda por informação processada num tempo em que a informação-commodity barata e burra abunda vale a pena para dar partida à reflexão sobre o que fazer a respeito de um ambiente que, em última análise, alimenta os descornados e perigosos. A oferta de notícias-commodity não vai deixar de existir. Mas não é por isso que a imprensa de referência precisa concorrer com ela.

Mas, enfim, estou pensando com os dedos.

4 comentários:

Barone disse...

Prezado,

Discordo quando você diz que a culpa não é da imprensa. É sim, em parte. A condenação do atirador de elite relacionado ao caso de Perdizes foi uma situação típica da hipocrisia brasileira e fez com que a polícia passasse a pensar 100 vezes antes de assumir risco semelhante. Ao atribuir àquele policial culpabilidade pela morte da refém a justiça e a imprensa (que condenou o policial antecipadamente) fizeram um desserviço ao Brasil.

O coronel Eduardo José Félix, comandante da Tropa de Choque, está repleto de razão quando diz: “Inevitavelmente os senhores da imprensa estariam questionando o Gate do mesmo jeito. É um garoto de 22 anos, sem antecedentes, que estava passando por uma crise nervosa”. Seria exatamente isso que ocorreria e não podemos ser hipócritas e imaginar o contrário.

Veja, não sou adepto de violência gratuita, de truculência policial, de mortes desnecessárias ou o que seja. Mas não sou adepto também da irresponsabilidade dos que defendem os direitos humanos dos bandidos em detrimento dos direitos das vítimas. Hoje, em nosso País, as organizações voltadas aos direitos humanos caminham por uma estrada equivocada, fruto da nossa “classe média eternamente culpada” e de nosso “complexo de pobre coitado”.

Porque a imprensa não sugeriu durante as 100 horas do seqüestro que a polícia usasse um atirador de elite? Nenhum jornalista fez esta sugestão claramente. Pelo contrário. Muito fácil sugerir isso agora.

Portanto, parte da culpa é sim da imprensa, sempre pronta a condenar a polícia antes mesmo de qualquer investigação ser realizada. Como sempre, não olhamos nosso próprio rabo.

Marcelo disse...

Barone, não considero que eu tenha isentado a cobertura de responsabilidade. Mas não dá pra jogar a Folha no mesmo saco que a Sônia Abrão, por exemplo.

Houve uma espetacularização, certamente; houve uma celebritização do criminoso; isso foi um desserviço. Não tenho dúvida alguma de que o caso durou todas as 100 horas muito por causa do circo. Concordo que o coronel Eduardo Félix tem razão em sua observação. É o que se descreve em inglês como "damned if you do, damned if you don't".

Discordo de ti exatamente no ponto seguinte, mas exatamente por concordar contigo no primeiro: a decisão de atirar ou não num criminoso é séria e técnica demais para depender da opinião de jornalistas - que são sujeitos especializados basicamente em contar o que os outros fazem. Não faz sentido algum. Acho complicado quando se delega à imprensa, concreta ou subjetivamente, a responsabilidade de decidir por quem tem a atribuição legal de decidir.

Quem tinha que decidir é a polícia, que - supõe-se - tem quadros com treinamento e atribuições para tal. Mas aí, voltando ao ponto onde a gente concorda, ela se sentiu de mãos atadas pela espetacularização do episódio. Não devia.

A coisa não é fácil, não.

Barone disse...

Marcelo,

concordo com você, "a decisão de atirar ou não num criminoso é séria e técnica demais para depender da opinião de jornalistas”.

O problema é que sempre que analisamos a ação da polícia (e me incluo nesta crítica) parecemos esquecer que eles, também, são seres humanos, sujeitos a dúvidas, temores, etc. Por mais preparado que um policial seja, é impossível que ele não se coloque na pele do atirador de elite de Perdizes. “Atiro, não atiro? E se erro? E se mato o refém? Melhor não atirar...”. É o que deve pensar um homem destes, torcendo para que a ordem não seja dada pelos que estão no comando.

A coisa não deve ser fácil mesmo Marcelo. Não gostaria de ficar na pele deste pessoal.

De todo este episódio fica para mim um gostinho amargo na boca, a certeza de que nossa profissão está no descaminho, focada no que não precisa ser visto ou dito, um olhar enviesado para a sociedade e o que realmente interessa.

Sei lá...

Paulo Henrique disse...

Marcelo, o coronel está errado e certo. Errado ao não ter atirado no descornado, se de fato teve oportunidade. E certo ao dizer que a imprensa (sempre com os tais "movimentos dos direitos humanos) o massacraria por ter matado um cara sem passagem pela polícia. E daí?! A polícia tinha a obrigação de preservar a vida da vítima, não do algoz. Houve uma brutal inversão de valores. Ou seja, o coronel erra de novo ao dar importância para o que a imprensa e os "movimentos dos direitos humanos" diriam sobre o caso. Aliás, não vi nenhum defensor dos "direitos humanos" protestar contra o assassino. Depois reclamam porque são acusados de só defender os "direitos humanos" dos bandidos.
Quanto à imprensa, concordo com você em tudo.
abração